Será que estamos preparados? Em tempos em que o país debate os impactos da longevidade, começa a ser discutido também o prolongamento da vida sob quaisquer condições e mesmo contra a vontade de alguém que, diante de muito sofrimento, até implora para morrer. Por sua vez, quem atende ao pedido e ajuda esse enfermo em seu intento – como nas práticas de eutanásia e suicídio assistido – realiza um gesto de amor ou simplesmente é um assassino? Até o médico Drauzio Varella já se manifestou pedindo mais luz sobre esse tema.

O cinema colocou a questão de forma pungente em um filme de Michael Haneke, que ganhou o Festival de Cannes em 2012 e levou o Oscar de melhor produção estrangeira no ano seguinte. Seu título é por demais simbólico: “Amor”. No longa-metragem, um homem chega ao ponto em que assistir ao sofrimento de sua mulher, que padece do Mal de Alzheimer, torna-se insuportável.

Na Alemanha, a vida de certa forma imitou a sétima arte na cidade de Colônia. Em janeiro deste ano, um homem de 84 anos foi a julgamento por ter matado sua mulher em 2017. Ele alegou que ela pedia todos os dias para morrer, devido a um quadro de demência. Diante disso, ministrou-lhe uma dose fatal de sonífero. Em seguida, tentou tirar a própria vida, mas acabou falhando nesse intento.

Eutanásia e suicídio assistido: entenda a diferença

Falemos, então, de eutanásia e suicídio assistido. No mundo fora das telas, quem age para dar cabo do suplício daquele que ama pode ser legalmente condenado. Isso porque as duas práticas mencionadas são proibidas na maioria dos países, inclusive no Brasil. E, quando permitidas, devem obedecer a uma série de condições antes de serem aprovadas.

O que as difere está em quem realiza o ato final que vai gerar a morte, como explica Luciana Dadalto, doutora em Ciências da Saúde, mestre em direito privado e pesquisadora da terminalidade da vida. Na eutanásia, é um terceiro que ministra a substância letal, enquanto a própria pessoa que quer morrer é quem o faz no suicídio assistido.

No Brasil, esses procedimentos não são permitidos. “A eutanásia se enquadra no Artigo 121 do Código Penal como homicídio”, diz Luciana. “Já o suicídio assistido se relaciona ao Artigo 122 do Código, referente a auxílio e instigação ao suicídio. Houve um projeto de lei que incluía a proposta de estabelecer uma pena diferente para a eutanásia em relação ao homicídio, mas essa parte do texto foi removida.”


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 O que está em jogo, então, aqui, em território brasileiro, coloca de um lado a perspectiva de crime e, de outro, a do direito à morte – discussão para a qual, na opinião da advogada, o Brasil não está preparado. “Somos um país muito religioso”, justifica. “E não existe uma maturidade social para esse debate agora.”

Luciana Dadalto inclusive diz considerar perigoso tratar a questão de modo superficial ou até banalizado. “Mesmo artigos como os do Drauzio Varella, que não é especializado no tema, mas levanta a necessidade de falar sobre o assunto, fazem com que ele pareça mais simples do que realmente é”, afirma. “Precisamos tomar cuidado para não haver uma glamourização dessa possibilidade de dar término à vida. Nos países em que a eutanásia ou o suicídio assistido são permitidos, há critérios muito rígidos para chegar a essa permissão.”

Testamento vital e laudo médico

Assim, é necessário analisar as circunstâncias diante das quais Bélgica, Canadá, Holanda e Luxemburgo reconhecem o direito a esses procedimentos – na Suíça, só o suicídio assistido é permitido, assim como acontece em alguns Estados americanos. A Colômbia, por sua vez, só legalizou a eutanásia. A Alemanha descriminalizou o suicídio assistido.

Em termos legais, o paciente precisa, primeiro, incluir em um documento – chamado de testamento vital – as práticas que ele autoriza em caso de doença terminal: entre essas possibilidades, estão evitar tratamentos para o prolongamento artificial da vida e a realização da eutanásia e/ou do suicídio assistido. Também são exigidos laudos médicos que comprovem a irreversibilidade da patologia que justificaria a decisão de tirar a própria vida.

E, ainda que essas premissas sejam obedecidas, existem várias situações que provocam dúvidas – e até acabam parando na Justiça. Em casos que envolvem um quadro de demência, por exemplo.

A polêmica foi levantada por um documentário sobre uma mulher holandesa em estágio inicial de Alzheimer. Annie Zwijnenberg teve certeza de sua decisão e a tomou de forma consistente e clara; aos 81 anos, foi submetida à eutanásia. Porém, há ocorrências desse tipo de doença em que o discernimento do paciente não é tão facilmente identificado.

A normalização da morte assistida, por sinal, tem sido alvo de investigações do Ministério Público da própria Holanda, dado o aumento do número de realizações dessa prática no país. Um dos casos investigados é o de uma mulher de 67 anos que passou pelo procedimento mesmo sem o médico ter sido capaz de assegurar que o pedido havia sido voluntário e devidamente deliberado.

Portugal, por sua vez, tem cogitado a legalização da eutanásia. Pesquisa realizada no país em 2017 com os millennials – nascidos de 1980 em diante – apontou que cerca de 80% dos portugueses com idades entre 18 e 34 anos eram favoráveis à morte medicamente assistida.

Romeu e Julieta da Terceira Idade

Partindo do cinema para a literatura, em 2017 foi lançado no Brasil um livro que conta o transcurso de uma eutanásia “clandestina” realizada no país. “O Último Abraço – Uma história real de eutanásia no Brasil” (editora Record) é um tratado jornalístico escrito por Vitor Hugo Brandalise e que conta a saga de Nelson e Neusa Golla.

Em 2014, ele resolveu pôr fim à própria vida e à da companheira, que morava à época em uma casa de repouso em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Ela estava debilitada devido a uma série de AVCs e uma depressão profunda. Para realizar seu intento, Nelson decidiu usar uma bomba.

Só que a empreitada não foi de todo bem-sucedida: Neusa morreu, mas o marido saiu “apenas” ferido, com fratura no tórax, e intoxicado. Acabou sendo internado em um hospital psiquiátrico. O episódio ficou conhecido como “Romeu e Julieta da Terceira Idade”.

Um brasileiro que queira se submeter ao suicídio assistido tem um jeito de fazê-lo sem infringir a lei. “Basta ir para a Suíça”, orienta Luciana Dadalto. “Lá, uma clínica especializada cobra 10 mil francos suíços [cerca de R$ 40 mil] para executar o procedimento. E, no atestado de óbito emitido, o padrão é determinarem causa natural para a morte”, diz. “Depois, o corpo em geral é cremado. Não há problemas com a legislação brasileira nesse processo.”

Embora o atestado defina a morte como natural, não é exatamente com naturalidade que esse tema é tratado. Em alguns casos, pode-se dizer que é um gesto de amor. Ou para dar fim a um sofrimento que poderia se dizer desumano. De qualquer maneira, permanece a pergunta, e a resposta a ela sempre vai depender muito de cada um: será que estamos preparados?

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