Quantas pessoas trans (ou transgênero, que apresentam identidade de gênero diferente da que foi designada no nascimento) você conhece? É bem possível que sua resposta seja “nenhuma” ou “poucas”.

“Você se pergunta: ‘Onde estariam?’ Elas estão no armário”, pondera a psicanalista Letícia Lanz, 66, autora do primeiro livro sobre estudos transgêneros escrito originalmente em português (“O Corpo da Roupa”, editora Transgente).

E ela fala com propriedade. Nascida Geraldo Eustáquio de Souza, só se assumiu depois dos 50, já casada e com três filhos. Segundo Letícia, é bem mais difícil para uma pessoa trans “sair do armário” do que para uma pessoa gay ou lésbica – ainda que seja bastante complicado para todas, dado o conservadorismo do país.

“Se é solteira, pode sofrer uma repulsa enorme de pais, parentes e amigos. Se é casada ou namorada, se é uma mulher trans lésbica ou um homem trans gay, a coisa fica mais complicada ainda. Porque há repúdio, inclusive dentro do gueto [LGBT]. Aí as pessoas perdem emprego, perdem clientes, perdem status, perdem dinheiro, lugar de fala.”

Exclusão

No Brasil, a expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos, segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), ante 75 anos da população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os motivos para a diferença são muitos e vão de violência (somos o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, de acordo com dados da Transgender Europe), vulnerabilidade social e pouco acesso ao mercado formal de trabalho até exploração sexual e falta de garantia de direitos fundamentais, como saúde e educação.


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“Assim como a sociedade é muito hierarquizada, também no gueto transgênero há uma hierarquia muito forte, e o elemento que mais se destaca é a classe socioeconômica. É evidente que, se for considerar uma travesti de rua, que vem lá da base da pirâmide, uma pessoa de periferia, preta e pobre, que sofreu horrores na infância e na adolescência, você não vai ter uma qualidade de vida na terceira idade semelhante à de uma pessoa de classe média. Inclusive por um aspecto: é possível que não chegue a essa idade”, destaca a psicanalista.

Sobrevivência

O problema não é exclusividade do Brasil. No mundo todo, o público “T” é um dos segmentos mais estigmatizados da sociedade. As representações de trans (em especial as de pessoas mais velhas) praticamente inexistem – as poucas são quase sempre unidimensionais.

Pensando nisso, a fotógrafa Jess T. Dugan e a assistente social Vanessa Fabbre viajaram pelos Estados Unidos por mais de cinco anos, fotografando e entrevistando homens e mulheres trans ou em não conformidade de gênero.

O resultado deu origem ao “To Survive on This Shore” (Para Sobreviver Nesta Costa, em tradução literal), um projeto que reúne imagens e depoimentos de 65 pessoas com mais de 50 anos de idade.

“Eu queria ver como, mesmo com tanta adversidade, as pessoas encontraram a sua identidade, encontraram uma comunidade, encontraram uma família, não apenas fora das expectativas sociais, mas quase sempre em direção oposta a elas”, explicou Jess, em entrevista ao portal do Instituto de Longevidade Mongeral Aegon.

O trabalho deu origem a um livro (que pode ser adquirido neste link) e a uma exposição itinerante de fotografias. Confira, a seguir, trechos de algumas histórias e fotografias do projeto. Os depoimentos completos podem ser lidos, em inglês, no site do “To Survive on This Shore”.

Alexis, 64 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“O ativismo me mantém jovem. Mas eu amo a minha idade e amo quando posso ser a mentora de alguém. Porque – eu nunca imaginei que diria isto – a idade me deu uma perspectiva que a juventude me negava. Quando tinha 17 anos, sabia tudo. Quando completei 35, comecei a notar que ‘certo, você sabe quase tudo’. E acredito que, quando você chega aos 65, percebe que sabe muito pouco, mas tem noção de quão preciosas são as coisas que realmente conhece.”

 

Barbara, 70 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Sempre soube que era diferente, mas não sabia o quanto. Precisei ensinar a mim mesmo como ser um garoto, um homem. Isso não era natural. Após o colegial, entrei para a Força Aérea. Quando saí, fui à faculdade e comecei a trabalhar na United Airlines. Nessa época, conheci minha noiva e nos casamos. Após 10 anos, Barbara – apesar de Barbara ainda não ser Barbara naquele tempo – estava gritando para se revelar. Até que um dia contei para minha esposa. Meus três filhos já eram adultos. Ninguém me aceitou. Até hoje. Agora, pelo lado bom, esta tem sido a melhor época da minha vida. Eu amo quem sou. Estou aproveitando ser uma mulher e me sentir natural em minha própria pele. Queria ter outros 50 anos pela frente.”

 

 

David, 63 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Minha transição de gênero durou aproximadamente três anos. Acabei me tornando reverendo depois disso e esperava poder compartilhar a minha história, mas estávamos no começo dos anos 80, com Reagan, Anita Bryant, você sabe, todas estas almas maravilhosas. Não tinha revelado nem para os meus filhos ainda, só para Deborah, minha esposa, e sabia que precisava que eles soubessem antes de tornar público. Tivemos, então, que descobrir como fazê-lo, o que acabou abrindo a porta para todo o resto. Hoje, três de nossos filhos nos apoiam e sentem orgulho de nós, mas outros dois decidiram que o estigma era muito grande e não querem ficar por perto. Isto é muito doloroso. Ainda estamos lidando com isso.”

 

Dee Dee Ngozi, 55 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Uma noite, na igreja, eu estava falando sobre o HIV e minha jornada com a doença, e esse reverendo africano apareceu e falou: ‘Você é Ngozi’. Eu respondi: ‘Oh, o que isto significa?’: E ele disse: ‘Significa bênção de Deus. Você foi abençoada por Deus’. Eu não sabia como Deus se sentia sobre isto [ser uma mulher transexual], mas acredito n’Ele, tenho uma profunda bagagem espiritual e falo constantemente com o Espírito Santo, que me tirou dos trabalhos sexuais e me levou para a Casa Branca.”

Diego, 59 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Nunca tive que me esconder da família, apenas que enfrentar barreiras externas. Minha casa sempre foi um lar e sei que isso é um privilégio, já que nem todo mundo tem essa segurança. Aos 5 anos, contei para os meus pais que tinha nascido errado. Primeiro para a minha mãe. Ela deixou a sala e pensei: ‘Vou levar uma surra. Ela foi buscar um cinto ou uma colher de pau’. Ela retornou com uma revista que tinha uma foto de Christine Jorgensen na capa. E disse: ‘Eu não sei se existem pessoas como você, que nasceram meninas e se veem como meninos, mas esta mulher nasceu menino, cresceu como homem e, finalmente, se tornou ela mesma, uma mulher. E acho que, se isto é OK para ela agora, será também para você quando crescer’.”

Duchess Milan, 69 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Sei apenas que eu sou eu. Não penso em termos de nomes, formas e todas essas coisas. Isso não importa. Estou em paz comigo. Sei quem sou, e o que outras pessoas pensam sobre mim não é da minha conta. Então, esta é quem sou. Minha família me aceitou. Isto nem é mais uma questão.”

 

 “A única hora que fiquei no armário foi para escolher um vestido, sair de lá e colocá-lo”

 

Gloria, 70 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Sempre me identifiquei como mulher. Desde pequenininha eu sabia quem era, sabe? E as pessoas diziam: ‘Como você, tão nova, já sabe quem é?’. Sempre me senti assim, então, esta é quem sou. [Hoje] sou uma idosa. Cheguei aos 70, e muitas delas [jovens pessoas trans] não chegarão. Porque a maioria morre por causa de drogas e doenças sexuais ou são assassinadas. Elas me fazem perguntas como: ‘Bem, Mamãe Gloria, como você conseguiu passar por isso?’. Eu digo: ‘Consegui por causa do amor de minha família e a graça de Deus’. Foi assim que consegui. Nunca fiquei no armário. A única hora que fiquei no armário foi para escolher um vestido, sair de lá e colocá-lo”.

Jay, 59 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Sou um homem transexual clássico, como vejo isto, porque, desde minhas primeiras recordações infantis, já me entendia como um garoto no corpo de uma garota. Rezava todas as noites para que Deus me fizesse acordar como o menino que deveria ser. Isso dito, fui também um ativista político LGBT. Por muito tempo, a sociedade me identificou como lésbica e parecia ignorar meu status de transgênero. Naquela época, nos anos 1950 e 1960, não havia toda essa nuance ao olhar a comunidade LGBT. Estávamos todos agrupados no mesmo barco. Nós colocamos nossas vidas em risco para [mudar] isso. Nós temos que nos unir e não podemos desistir.”

Sky, 64 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Eu vivo em abundância de muitas coisas: experiências, família, amigos, acaso. Viver em abundância é o que nos mantém saudáveis e felizes. Você não pode ser acorrentado pelo estresse e esperar ter uma vida plena, e ser alimentado com medo disso. A vida realmente começa quando você deixa de ter medo. Eu vou para onde vou. Eu vou ver o que vou ver.”

Tony, 67 anos

envelhecimento de pessoas trans Crédito: To Survive on This Shore

“Eu era um adolescente nos anos 60. Especialmente no ensino médio e perto de outras crianças, sempre tive um problema de gênero. Nasci mulher, vivi como mulher, mas, na verdade, era um homem. Ser diagnosticado com Transtorno da Identidade de Gênero ajudou bastante, mas ainda luto contra as pessoas, especialmente minha família. Disse para mim mesmo: ‘Você sabe, tenho 63 anos de idade e isso tem que acabar. Vou até o fim’. Então, com 63, decidi que não ia mais viver assim, como uma mulher. Eu me sentia mais confortável como um homem e queria o pacote completo. Diga aos jovens que estão passando pela transição de gênero para nunca desistirem. Eu passei por períodos de desistência, mas tive que me esforçar.”

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