“Seja madrinha por um dia.” O título da reportagem despertou a atenção da administradora de empresas Aidê Torres, então com 52 anos. Imaginou: “Talvez seja um projeto para levar um pequeno ao cinema ou ao teatro. Pode me interessar”. Não era. Tratava-se de um programa de apadrinhamento afetivo, que busca proporcionar uma forma de criar vínculos seguros para a vida – e não apenas por 24 horas – a crianças e adolescentes que moram em abrigos ou com famílias acolhedoras.
Na prática, a ideia é permitir que o menor tenha uma referência afetiva. O padrinho ou a madrinha afetiva precisa ter interesse e disponibilidade de tempo, mas não é exigido que se torne guardião, que tenha determinada condição financeira ou que seja responsável pelo seu sustento, por exemplo. “Na hora, eu me empolguei”, diz ela, que mora sozinha e é mãe de um homem de 30 anos. “Mesmo assim, tive medo. É muita responsabilidade.”
Apesar do receio, inscreveu-se no programa no fim de 2016. No começo de 2017, foi chamada para entrevistas com psicólogos e assistentes sociais, para avaliar sua motivação e seu compromisso. Em seguida, passou por uma capacitação, uma vez que questões sensíveis podem aparecer durante o apadrinhamento afetivo, como dificuldade de relacionamento ou problemas pontuais.
O primeiro encontro no abrigo foi com várias crianças e adolescentes e diversos potenciais padrinhos e madrinhas. Em geral, são visitas coletivas, em que uns conversam com os outros para identificar possíveis afinidades.
Ao encontrar Natan, um jovem com então 15 anos de idade, Aidê se emocionou: “Foi como se eu tivesse visto um filho. Parece que foi um encontro de almas”. Ele conta que havia outras três pessoas dispostas a apadrinhá-lo. “Ela já tinha me escolhido. Na visita, ficou me olhando. Eu deixei as coisas fluírem”, lembra.
Como funciona
Há, no país, 47 mil crianças acolhidas, das quais 13,4 mil em São Paulo, segundo dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No total, 8,3 mil estão aptas à adoção. E ainda que o número de pretendentes chegue a 41,7 mil, muitas estão, em geral, fora do perfil mais comumente desejado pelos adotantes (até 5 anos de idade, brancas, sem deficiência e em boas condições de saúde).
Não existe um único programa de apadrinhamento afetivo em todo o país. Os critérios de seleção podem mudar – como idade –, assim como a duração dos cursos de capacitação. “Cada um tem sua forma, mas o objetivo é sempre o mesmo: permitir que essa criança tenha um convívio familiar e comunitário assegurado”, explica a juíza auxiliar Sirley Claus Prado Tonello, da Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro, na capital paulista.
Ela diz que não há números consolidados, uma vez que cada vara é responsável por uma região. No caso de Santo Amaro, a parceria é feita com a Unifai (Centro Universitário Assunção), que oferece o programa de formação de padrinhos e madrinhas.
O processo de preparação e seleção do Instituto Fazendo História, que desde 2005 trabalha com acolhimento de crianças e jovens e é tido como referência, é realizado duas vezes por ano e tem duração de cerca de quatro meses. Primeiro, os candidatos assistem a uma palestra, depois participam de encontros sobre o papel do padrinho. Só então conhecem a meninada – e mesmo assim, não é nesse momento em que a combinação é feita.
A coordenadora do programa, Heloísa de Souza Dantas, explica que há ainda mais uma visita ao abrigo, com as duas ou três crianças com as quais houve mais empatia, para só então haver o pareamento. “É um quebra-cabeças, mas não pode haver atropelo”, afirma. São meninos e meninas que já passaram por rupturas na vida e há etapas elaboradas para evitar que outra faça parte dessa conta.
“Precisa se conhecer para saber se é isso o que deseja”
[O candidato] “precisa se conhecer para saber se é isso o que deseja, porque vai mudar a vida dele e a da criança”, avalia a psicóloga Márcia Regina da Silva, diretora-presidente do Instituto Adoptare e professora da Universidade Cruzeiro do Sul. “Não é o padrinho da sacolinha do fim do ano, mas uma pessoa que vai passar duas horas por semana com o jovem, que vai acompanhá-lo na escola e, mais tarde, passar o fim de semana ou viajar.”
Impactos
À primeira vista, parece um ganha-ganha – e é, em termos de afeto, experiência e troca – entre padrinhos e afilhados. Não significa que o processo não venha com alguns desafios para ambos. Há conflitos, choques de geração e testes de resistência emocional.
Os padrinhos têm de vencer idealizações, não só quanto ao comportamento da criança, mas principalmente quanto à lógica assistencialista. “Quando eles vêm com a ideia de ajudar, despotencializa”, sinaliza Heloísa, do Instituto Fazendo História. Márcia, do Instituto Adoptare, diz que é preciso pensar em trocas, em afeto e em ser importante na vida de alguém.
“Não pensava em ser amado”
Para Aidê, os primeiros meses como madrinha afetiva de Natan foram turbulentos. Assistiu a aulas na escola, porque ele enfrentava professores. Discutiram, o que fez com que ela buscasse terapia para o jovem. Até que ele colocou à prova o carinho dela. “Ela falou: ‘Se você não está a fim, também não estou’”, lembra ele. “Eu era muito peralta. Imaginava que, a qualquer hora, ela poderia sair [do programa de apadrinhamento].”
Mas aquele olhar, o primeiro, quando ainda nem se conheciam, já havia denunciado que, entre eles, havia afeto. E juntos construíram uma relação, aparando arestas e dialogando para entender um ao outro.
Hoje, dois anos depois, ele com 17 e ela com 54, saem juntos, conversam e fazem planos. Natan diz que mudou na forma de pensar e agir. “Eu era muito impulsivo, agressivo, gostava de chamar a atenção, tinha um pensamento muito egocêntrico. Tudo era discussão ou chantagem.”
“Agora, sou mais dócil, me tornei uma pessoa melhor, evoluí muito. Eu me sinto realizado, amado.” Respira fundo e continua: “Você acredita em amor de mãe? Não pensava em ser amado”, completa. A madrinha afetiva é só elogios ao afilhado. “A autoestima melhorou, ele tem mais tranquilidade. É gentil, educado, amoroso, inteligente”.
“Estou tendo uma nova oportunidade de ser mãe”
Mas ela também mudou. Ele diz que Aidê também era impulsiva – e que hoje pensa antes de reagir. “Ele deu sentido à minha vida. Veio como um presente, uma força para lutar. Agora, tem uma motivação a mais, porque não é só para mim.”
A experiência, mais do que transformadora para os dois, gerou outros frutos. Aidê apadrinhou outro jovem, Mateus, de 14 anos. E perguntou a Natan se queria ser adotado por ela. “Estou tendo uma nova oportunidade de ser mãe.”
Os dois aguardam a audiência com o juiz, que se posicionará sobre a adoção. “Ainda que esse não seja o objetivo do programa de apadrinhamento afetivo, mas sim que ele seja uma referência afetiva constante, sabemos que pode acontecer”, diz a juíza auxiliar.
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