É mais fácil lidar bem com as gafes dos outros do que com as próprias. Da mesma forma, com os erros alheios. A gafe, bem como a inconveniência, se insere no espaço social. Muita coisa feia e indigna, quando cometida no espaço privado da nossa vida, quando não é vista por outros, fica o dito pelo não dito e se faz de conta que nada aconteceu.
Este ainda não é o melhor dos mundos, porque a pessoa que tem uma consciência ética bastante elevada, não depende do que os outros viram ou o que eles achariam. Ela própria reconhece seus erros e lida com isso. A gafe só se torna feia ou muito grave quando envolve autoridades públicas. Então, ela passa para o nível do inaceitável. E vira matéria predileta das fofocas que esquentam o disse me disse das altas esferas. Quase todo mundo se delicia com os erros alheios, como se não os cometesse.
Por este motivo é que são potencialmente lesivas para a nossa autoimagem. Porque, parte da nossa autoestima está profundamente conectada com aquilo que os outros pensam da gente.
Críticas nos afetam. A alguns mais, a outros menos. Porém, a desqualificação pega mais fundo. O deboche, a ironia e o desdém machucam e introduzem insegurança pessoal, o que se traduz por perda da capacidade de manter elevado o nosso amor próprio.
São expressões especialmente ferinas, mais ainda quando sutis. O ataque do outro a nossa pessoa, sendo grosseiro e explícito, é mais fácil de driblar, de rebater ou de superar. Mas as palavras que não são proferidas, um dar de ombros, uma sobrancelha erguida, um discreto muxoxo ou ricto de nojo, ah, são gestos e mímicas poderosíssimos que nos abalam, a menos que sejamos um narcisista de carteirinha, daqueles que não têm jeito, que só enxergam a si próprios. Para essas personalidades, o outro não importa.
O problema de perceber e corrigir suas gafes e condutas inconvenientes é que isso só se desenvolve mediante um grande esforço de auto-observação num espaço despido de falsos pudores, no decorrer de uma psicoterapia profunda. E, de certo modo, demorada. Perceber-se com realismo, sem sentir vergonha, nem entrar em culpa, mas com o propósito de se autocorrigir é uma das maiores venturas de viver bem com os outros e consigo mesmo.
A maioria dá de ombros, como que dizendo deixa, isso não tem tanta importância, assim. Só que tem. Porque a pessoa, ela própria, pode se achar no direito de dizer asneiras e fazer besteiras sem arcar com as consequências. Porém aqueles que as acompanham sofrem.
Há, portanto, pessoas que não estão nem aí e não reconhecem como muito inadequado ou, mesmo, um ato de violência, o fato de se darem o direito de invadir o espaço alheio – físico e ou psíquico - expondo demais alguém que quer e que precisa se preservar.
Além de muito feio, agir de modo displicente para com os outros é vulgar e violento. Em geral, são os acompanhantes, familiares, esposos e filhos que arcam com o ônus de precisarem se desculpar, sentindo-se humilhados, como que se desculpando por algum mal feito que não dependeu deles, nem conseguiram evitar. Isso vai além da polidez, repito. É violento.
Pessoas que fazem uso abusivo do álcool e de outras drogas, pessoas que nunca tiveram um forte senso de decência ou, se tiveram, já o perderam, pessoas que cultivam relações rasas e agem sem noção podem ser, exatamente, as pessoas com quem mantemos vínculos profundos, pessoas a quem amamos, de quem dependemos ou de quem cuidamos, que nos colocam em estado de alerta permanente no espaço social, nos causa ansiedade e vergonha.
Todos os maus hábitos, antes chamados vícios, agora tratados como distúrbios de comportamento em alguns casos e desvios de caráter em outros, bem como as doenças mentais degenerativas, introduzem situações delicadas para o convívio social respeitoso e harmonioso. Os doentes podem chegar a dizer e fazer coisas totalmente fora de possibilidade de aceitação.
Devido ao fato de estarem doentes, especialmente quando descompensados ou em crise, não têm controle sobre si mesmos. Além disso, as pessoas que já eram abusivas antes, incapazes de reconhecer que suas brincadeiras eram estúpidas, agora que ficaram doentes pioraram nesse quesito. Sua abusividade se intensifica, continuando a achar graça por provocar os outros e, depois, darem uma de ofendidos. “Foi uma brincadeira!”, protestarão e ficarão zangados. Vão também contra-atacar: “você é que é chato - ou chata - que não sabe brincar. Leva tudo a ferro e fogo!” Isso para dizer o mínimo, porque alguns doentes ficam ferozes quando repreendidos ou confrontados.
Quando o desafio é manter a própria saúde e autoestima na convivência estreita com alguém severamente doente é preciso não permitir nem levar como seu o ato, o gesto ou o comportamento inconveniente. Não adianta sentir vergonha por aquilo que o outro cometeu. No máximo, ficar por perto e procurar afastar aquele ou aquela que está abusando dos outros com as suas falas grosseiras e insinuações. Uma breve explicação pode ser bem-vinda: - Lamento, o fulano ou fulana está seriamente doente.
Tentar corrigir o doente, dar beliscão, tranco ou dizer algo também violento equivale a jogar gasolina na fogueira. O risco da situação se complicar aumenta e muito. Uma pessoa que perdeu a camada de respeito e polidez de que necessitamos para sermos bem aceitos e bem vistos em sociedade é uma das perdas mais dolorosas. Não para o doente, mas para os que convivem com ele. Ou ela.
Ninguém nasce bem educado. O temperamento pode ser diferente. Uns mais cordiais e delicados no trato com as demais pessoas, outros mais grosseiros, sem papas na língua, como se diz, mas nem todas as pessoas mudam tanto assim ao desenvolverem a doença de Alzheimer, por exemplo. Quem sempre teve gênio forte, explosivo, vai ter essa sua característica acentuada. Quem teve tendências para se acomodar, vai se tornar ainda mais passivo e acomodado. Quem sempre foi fechado e taciturno, vai virar uma ostra.
Além disso, outras morbidades também poderão se instalar. Demência é uma coisa, psicose é outra. Também não existe uma única forma de demência, nem um único motivo. Os profissionais precisam explicar claramente o que esperar e como lidar com essas comorbidades. A situação é complexa. A doença de Alzheimer tem parte no descontrole, mas a ferocidade de um paciente depende de outros fatores que não o Alzheimer.
E as palavras? O senso de perseguição e as acusações? Por isso se diz que, em relação ao Alzheimer, cada caso é um caso. Agora, a abusividade é um traço de caráter sério, que pode estar presente desde muito antes da doença.
Todos conhecem pessoas que dizem gracinhas nada engraçadas. Que contam piadinhas chatas, que se dão ao direito de desfazer e de boicotar o mérito alheio. Homem garanhão, que sempre foi misógino, vai continuar sendo misógino. A abusividade não tem nada a ver com a doença. É um traço de caráter praticamente permanente, que precisa ser tratado o quanto antes. Desde a infância ou adolescência, quando os pais e irmãos percebem que um dos membros da família está sempre tirando proveito dos demais.
Mas, não. Somos tolerantes demais. Os abusivos não têm medida. O que for que uma pessoa abusiva obtenha de alguém, jamais vai bastar. Abusivos não são gratos, embora possam agradecer. Abusivos são preguiçosos na sua essência. Não querem desenvolver nem usar de seus próprios recursos, se é que os têm. Preferem montar nas costas dos outros. Sua marca é querer receber tudo de mãos beijadas, sem se esforçar. E reclamar que receberam pouco.
Pessoas doentes são mais dependentes. Tornam-se muito mais vulneráveis e, em se tratando de doença mental, a sua emocionalidade usará de tudo quanto é manobra para submeterem os outros a seus caprichos e vontades. São demandantes. Por isso é que os cuidadores familiares e os profissionais precisam se cuidar. Para não se deixarem abater, nem esgotarem suas próprias forças.
Agora, quem sempre foi abusivo e pouco considerava o outro, tornar-se-á ainda mais abusivo, intolerante, exigente e inconveniente. A velhice não bem cuidada pode acentuar, mas a doença, com certeza, vai exagerar esses traços de caráter e a convivência se torna quase insuportável. A vida em sociedade pode vir a ser, então, indigesta para quem cuida de um doente impertinente. Aquilo que não se puder evitar, será necessário contornar.
Há doentes que passarão a exibir seus genitais, outros que cuspirão na cara das pessoas. Outros dirão baixarias e outros permanecerão alheios a tudo e todos, gritando suas dores e desconfortos sem parar. Mas não existe regra. São os familiares, os cuidadores e as pessoas com que se convive que precisam aprender a não levar tudo muito a sério e tomar consciência de que estão lidando com uma pessoa seriamente perturbada. Para que se ofender e fazer alarde?