Quando vivia 40 ou 50 anos, no máximo, a Idishe Mame (a mãe judia) já era uma instituição judaica. Hoje, elas e seus maridos podem viver 80, 90 ou até mais de 100 anos. A longevidade de nossos pais está trazendo uma oportunidade maravilhosa de convívio prolongado e, ao mesmo tempo, um enorme desafio.

Existe uma brachá (bênção) muito grande na possibilidade de ter nossos pais ao nosso lado por mais tempo. Hoje é frequente ver crianças que nascem com todos ou muitos dos bisavós vivos. Vemos bisavós assistirem ao bar ou bat mitzvá (ritos de maioridade) de seus netos e, por vezes, estão presentes embaixo de sua chupá (pálio nupcial).

Nossa tradição vê o envelhecimento como uma benção maravilhosa acompanhada de desafios. O midrásh (interpretação alegórica da Bíblia) nos conta que foi Abraão quem inaugurou a velhice. Segundo essa alegoria, antes dos patriarcas, as pessoas envelheciam sem que qualquer sinal de idade avançada aparecesse. Dessa maneira, era impossível distinguir um pai de um filho ou uma mãe de uma filha.

Foi somente quando Deus presenteou Avraham com a coroa da velhice (“ateret seiva”), ou seja, seus cabelos brancos, é que a devida honra e respeito puderam ser dados para os mais velhos.

A oração “Shemá Coleinu”, realizada no Iom Kipúr (Dia do Perdão), pede para que Deus não nos abandone no momento de nossa velhice. Além do pedido, essa reza recorda à sociedade sobre suas responsabilidades em relação aos mais velhos.

“É difícil ver fragilizados nossos maiores heróis de outrora”

O envelhecimento crescente da população nos levará a tratar deste tema com cada vez mais cuidado. Ainda não estamos totalmente equipados para lidar com uma população que vive cada vez mais e, graças a Deus, com cada vez mais qualidade.

Hoje pessoas com mais de 80 anos dirigem seus próprios carros, fazem ginástica, são economicamente ativos, estudam e participam de forma plena da sociedade.

Existem pais que envelhecem com grande autonomia. No entanto, em algum momento, o cuidado dos filhos passa a ser essencial e intenso.

Em nossos dias, filhos se encontram frequentemente na função de pais dos próprios pais. Hoje, ser filho de pais com idade avançada pode significar ter de assumir, gradativamente, a responsabilidade por todas as necessidades dos progenitores.

Esse processo normalmente vem acompanhado de muitos desafios emocionais. É difícil ver fragilizados nossos maiores heróis de outrora. O processo de envelhecimento de nossos pais inclui, muitas vezes, a perda de sua autonomia financeira, a falta de possibilidade de administrar situações cotidianas, a ausência de mobilidade, a incapacidade de ficar sozinho, um prejuízo da dignidade e os lapsos importantes de memória, entre outros desafios.

Ser filhos de pais que envelhecem, portanto, pode representar assumir o controle pela vida desses pais cada vez mais dependentes. Significa, por vezes, levar e trazer, controlar a contabilidade, montar operações hospitalares dentro de casa, monitorá-los com frequência. Às vezes lavar, limpar, enfim, amparar esses pais, que um dia trocaram nossas fraldas, de todas as maneiras possíveis.

"Atenção, filhos e pais: depois da travessia do Jordão, a relação não será e nem poderá ser a mesma”

Uma leitura metafórica da “Torá” pode nos trazer alguma luz sobre o desafio que enfrentam pais e filhos depois que envelhecem. Quando o povo de Israel está no deserto, se preparando para atravessar o Jordão e conquistar Canaã, recebe uma orientação importante de Moisés: "Lembrem-se de Deus depois que lá se estabelecerem".

Moshé estava preocupado com a relação que o povo teria com Deus após a conquista da Terra Prometida. Depois do crescimento, do amadurecimento, da autonomia de uma vida adulta em uma terra segura, o líder vislumbrava a mudança irreversível de relacionamento que estaria por acontecer.

É interessante notar que a mensagem de Moisés não é dirigida apenas ao povo. O líder também conversa com Deus como que preparando o criador do universo para essa nova forma de relacionamento que nasceria com o amadurecimento da relação, o envelhecimento, representado no texto bíblico pela travessia do Jordão.

Se, por um lado, Moshé recorda ao povo a necessidade de agradecer a Deus depois de cada conquista em Canaã, o líder também convoca Deus a se recordar e reafirmar seu pacto com os filhos de Israel. Como se Moisés dissesse: "Atenção, filhos e pais: depois da travessia do Jordão, a relação não será e nem poderá ser a mesma; o sucesso desta nova etapa vai depender de um reajuste de ambas as partes".

“Filhos precisarão superar os desafios de se tornar cuidadores dos próprios pais, e pais terão que aprender a ser cuidados pelos próprios filhos”

O mesmo acontece quando temos o privilégio de ver nossos pais envelhecerem. Os ajustes terão de ser feitos em todos os lados. Filhos terão que abrir espaço em seu corrido cotidiano para atender com carinho e prontidão as necessidades dos pais. Pais terão que compreender que seus filhos precisam também trabalhar e cuidar dos próprios filhos e, portanto, não estarão 100% do tempo à disposição deles. Filhos precisarão superar os desafios de se tornar cuidadores dos próprios pais, e pais terão que aprender a ser cuidados pelos próprios filhos.

Não existe fórmula mágica. O sucesso das relações nesta nova constelação dependerá da capacidade dos dois lados de se adaptar à nova realidade. A percepção da oportunidade maravilhosa que existe no envelhecimento dos filhos ao lado de seus pais existirá apenas se houver coragem de ambos para reconhecer que a vida não é, e não poderá, ser igual.

Os jovens de hoje serão os idosos de amanhã e devem se programar para isso. Assim como muitos já se conscientizaram sobre a necessidade de guardar dinheiro para o futuro, precisamos desenvolver a consciência de que esta poupança precisa incluir outros preparativos. Desenvolver ao longo da vida a consciência de que a travessia do Jordão trará desafios renovados pode ser a chave para uma velhice emocionalmente saudável para pais e filhos.

Que sejamos capazes de compreender que esse novo momento exige uma flexibilidade de todos. Filhos e pais precisam ser maleáveis e se adaptar aos desafios que o envelhecimento nos apresenta.

Se todos participarem desse processo com dedicação e diálogo, é possível que a nova vida em Canaã seja marcada por mais momentos de satisfação do que de obstáculos. Dessa maneira, acredito, a longevidade de nossos pais e a nossa própria será vivida por todos como uma verdadeira brachá.

Compartilhe com seus amigos