Raquel Oliveira foi chefe do tráfico na Rocinha, a maior favela do Rio, nos anos 90. Cheirou cola de sapateiro aos 6 anos para aplacar a fome, foi vendida para um chefe do jogo do bicho, foi perseguida, usou drogas, matou. “Eu não era oprimida. Eu oprimia”, reflete ela.

Para superar a dependência química, começou a escrever. Voltou a estudar: fez magistério e pedagogia. Lançou livro de contos e romance, “A Número Um”, autobiográfico, que vai virar longa-metragem.

Neste ano, deve lançar o Vozes da Noite, outro romance com inspiração em sua vida – desta vez sobre a dependência química e a libertação feminina. “A poesia me resgatou”, diz ela, aos 56 anos.

Confira, a seguir, os principais trechos da sua entrevista ao Instituto de Longevidade Mongeral Aegon.

“O dependente químico é como um pote, trancado e lotado de coisas, pronto para arrebentar”

Você começou a escrever por recomendação de terapeuta. Como foi?

Comecei a frequentar [uma igreja batista] e me inscrevi para o atendimento. Algumas semanas depois, o conselheiro falou: “Não dá. Você não consegue se relacionar”. Eu não conseguia chorar. Ele me deu o caderno, que é uma ferramenta da terapia ocupacional.

Vim para casa e o exercício era parar uma hora do dia e escrever quais as emoções eu senti durante aquele dia e o que me fez sentir aquilo. Era a última coisa que eu fazia antes de dormir. Mas eu não dormia. Ficava ali escrevendo, escrevendo.

Descobri que, através do papel, conseguia colocar as coisas para fora. Porque o dependente químico é como um pote, trancado e lotado de coisas, pronto para arrebentar. E encontra na droga de escolha o esvaziamento. O uso de droga faz esquecer. É como parar o tempo e parar no tempo.

Passei muitos meses sem dormir – foram quatro meses e não podia tomar analgésico para abstinência. Sentia dor em todo corpo por causa da cocaína. Pegava mesinha, botava na cozinha e ficava escrevendo. Dava a chave para a vizinha trancar minha porta e ficava escrevendo. Às 7 da manhã, ela abria. Eu não queria correr o risco de sair e usar [droga].

Aí aconteceu a poesia. Comecei a procurar livros e entrar em contato com alguns poetas, como Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Clarice Lispector. Três meses depois, eu tinha uns três cadernos grandes, de 100 folhas, com poesia. Fiz um livro de 120 páginas com 65 poesias.

Depois veio A Número Um?

Primeiro veio a publicação do livro da Flupp [Festa Literária das UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora] de 2014. Eu saí publicada com cinco poesias. E, naquele ano, saíram publicadas as cinco primeiras páginas de “A Número Um”, como um fragmento do romance, que lançamos em 2015 na Bienal do Livro.

A poesia me resgatou. Permitiu que eu exercitasse minha mente. Porque eu fazia o contrário: paralisava a minha mente com minha droga de escolha”

Em entrevista à BBC, você diz que a literatura a salvou. Como foi isso?

A escrita me levou para a vida real, me resgatou do buraco que fica todo dependente químico. E me fez buscar ferramentas para que eu conseguisse minha sanidade de volta.

Fui para o AA [Alcoólicos Anónimos] e o NA [Narcóticos Anônimos], fui estudar o que é dependência química e pude voltar aos estudos: fiz os quatro anos de Normal [de formação de professores de Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental], fiz o Enem, ganhei bolsa na faculdade UniCarioca, fiz pedagogia em quatro anos – fui uma das melhores da minha turma – e fiz minha monografia em cima da Síndrome de Alcoolismo Fetal.

A poesia me resgatou. Permitiu que eu exercitasse minha mente. Porque eu fazia o contrário: paralisava a minha mente com minha droga de escolha. E isso me levaria à loucura. Minha companhia era minha privada, meu trono – eu não conseguia mais usar droga com ninguém, dividir minha droga de escolha com ninguém.

Costumo falar que eu precisei de toda droga que usei. Uso desde os 7 anos de idade. Porque não ia suportar tudo o que eu passei se eu não tivesse anestesia. Por que a pessoa precisa de anestesia? Por que a pessoa não consegue suportar as dores do crescimento? As misérias da vida?

Você recebeu críticas positivas e negativas com A Número Um. Como reagiu?

As negativas foram muito poucas. As críticas foram muito favoráveis.

Alguma te emocionou?

O quê? Eu choro para caramba. Sou poeta, né?

Você mudou de uma pessoa que não chorava para alguém que chora muito...

Isso é uma das coisas que a dependência bloqueia: a sensibilidade. O dependente químico é muito repulsivo e sente muita dor.

“Tenho um projeto de livro de poesia para crianças. Tenho muitos planos”

Como surgiu o convite para lançar o livro em Portugal?

No início deste ano, a dona da editora veio de Portugal para um evento literário no Sul e descobriu meu livro. Ela ficou louca com “A Número Um”. Creio que é uma porta que vai se abrir para mim na Europa. Estou louca para vê-lo traduzido para o inglês. E vai virar um filme também. Está em tratamento de roteiro. No ano que vem ou em 2019, a gente está no telão.

Você pensa em alguém para o papel da protagonista?

Tem umas globais me ligando, me adicionando no Facebook. Mas eu não posso, não quero ficar muito ligada nisso, não. Estou compenetrada nesse novo romance. Quero ele prontinho em novembro. É baseado em fatos reais, que tem como título provisório “Vozes da Noite”.

É a história de duas mulheres, a Laura e a Kate Mahoney, que tem como cenário o Baixo Gávea. Tem sexo, ela é uma dependente química, que usa cocaína e passa para heroína. Estou falando dessa transição de uma droga para outra. O tema do livro é a liberdade feminina e a quebra de tabus, principalmente os sexuais. É a continuação da minha história de vida. Tenho um projeto de livro de poesia para crianças. Tenho muitos planos.

Por que você escolheu pedagogia?

Eu estava numa fase em que eu era diarista e trabalhava numa empreiteira de rescaldo de obra – aquela turma que entra para limpar os lugares depois da obra. Eu estava muito cansada, com mais de 40 anos. Pensava: “O que eu vou fazer da minha vida?”. Passei na escola, vi a faixa [chamando para o curso gratuito]. Fiz a prova, passei. E voltei a estudar.

“Não. Eu não era oprimida; eu oprimia. Botava o fuzil na cara”

Você quer ser uma das vozes da liberdade feminina?

Não quero ser vista como voz de nada. Quero dar visibilidade, através da minha escrita, a coisas que ninguém fala. Não posso falar muito sobre luta na minha época de anos 80 e 90 porque eu vivia movida a droga. A droga abre qualquer porta. Se não abre quando bate, arromba. Fui bandida de arma nessa favela. Vivi o oposto.

Você não era oprimida?

Não. Eu não era oprimida; eu oprimia [risos]. Botava o fuzil na cara. Sou respeitadíssima aqui na minha favela. Onde eu estiver, há de ter respeito.

As pessoas ainda têm medo de você?

O que eu posso fazer? O medo é libertador de alguma forma.

Do que você mais se orgulha e do que se arrepende?

Gosto de mim – isso é legal. Mas, às vezes, também me odeio. Tenho orgulho das coisas que eu produzo, da felicidade que eu tenho de encontrar a rima certa. Sou livre, não estou me escondendo. Tenho orgulho disso.

Eu me arrependo de ter cheirado todo o meu dinheiro. Cheirei tudo: carro, casa, joia. Tudo o que a cocaína me deu ela levou de volta. Agora eu dormindo aqui nesse barraco caindo aos pedaços. A grana só está dando para comer.

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