Meus olhos de menino, novo dono do mundo, arregalaram-se assombrados com o gigantesco esqueleto de baleia jubarte, com a formidável preguiça pré-histórica, com as múmias egípcias, os objetos de Pompeia e Herculano; com as coleções intermináveis de insetos monstruosos, aves e mamíferos empalhados, e o misterioso Bendegó, meteorito vindo dos confins do universo, sabe-se lá de onde, de qual galáxia, e há quantos milhões de anos, para aterrissar, prosaicamente, no sertão da Bahia.
Minha história de amor com o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no bairro imperial de São Cristóvão, zona norte da cidade do Rio, começou no exato momento em que, conduzido pela mão protetora e generosa de meu pai, transpus o portal do prédio antigo. Era um domingo de celebração, eu tinha oito ou nove anos e sequer imaginava as maravilhas que as paredes vetustas guardavam. Nas noites seguintes, sonhei com aquele mundo encantado, que ainda mal me revelava a paixão que cresceria poderosa em meu peito pelo resto da vida.
A cada visita, fui aguçando a minha curiosidade progressivamente. Vez por outra, ‘matava’ as aulas para perambular pelas ‘trocentas’ alas, repletas de descobertas estimulantes. Então, soube que as primeiras múmias haviam sido compradas por D. Pedro I; que a Imperatriz Leopoldina também doara um acervo admirável de utensílios usados no dia a dia dos nossos ancestrais e de peças geológicas inestimáveis; que Tereza Cristina, mulher de D. Pedro II, havia importado muitos achados das ruínas romanas sepultadas pelo vulcão Vesúvio, e que o Museu era reconhecido como um dos mais importantes do mundo, autêntico patrimônio da humanidade.
Mais tarde, fiquei sabendo que o edifício fora oferecido ao Príncipe Regente D. João pelo traficante de escravos Elias Antônio Lopes para tornar-se residência da Família Real, recém-chegada de Portugal; que a área onde foi construído o palácio pertencera remotamente à Ordem dos Jesuítas, expulsa do Brasil em 1759, e que, depois disso, o vasto terreno fora dividido e vendido a particulares, dentre os quais o negreiro Elias.
Disseram-me, ainda, que nos estábulos do paço, o príncipe que fundou a nossa nação conheceu os prazeres do sexo; que no salão principal, valsou com a filial Titilia, a Marquesa de Santos, afrontando a matriz, a austríaca Leopoldina de Habsburg. Garantiram-me que no aposento que servia aos despachos administrativos do reino, a esposa traída, irmã da segunda mulher de Napoleão Bonaparte, assinara corajosamente o decreto que separou o Brasil de Portugal e inaugurou o nosso país. Juraram-me que suas almas penadas frequentavam o pedaço todas as noites.
Jovem, impressionado e crédulo, comecei a perseguir os fantasmas que me diziam rondar os corredores do prédio, atazanando o plantão de vigias zelosos e o serão de funcionários dedicados. Fiz até algumas expedições aos arredores, nas altas horas, para tentar flagrar os espíritos errantes. Hoje, não acredito neles, ’pero que los hay, los hay’.
Seguindo o exemplo de meu pai, eu também guiei meu filho pelos corredores e salas daquele centro de cultura e vi seus olhinhos arregalarem-se à medida que vislumbravam o mesmo espetáculo que presenciei décadas antes. Revivi a mesma emoção, a mesma sensação de incrível descoberta nas reações daquele menino, meu herdeiro, o novo dono do mundo. Fomos e voltamos várias vezes, refizemos a magnífica trajetória sem enfado, sempre com renovado prazer.
Trinta anos depois, chegou o tempo dos netos, e todo o ritual amoroso se repetiu como se só a nós pertencesse. Aquele soberbo recorte da história brasileira e da evolução do mundo possuía o atributo mágico de receber cada visitante como se fosse o único, e tornar a experiência do conhecimento algo exclusivo. Assim, o palácio acolheu várias gerações de fiéis apaixonados.
Nas famílias cariocas principalmente, tornou-se obrigatório perguntar aos pais e avós, quando os membros recém-chegados completavam seus primeiros anos de vida: “como é, já marcou a visita ao Museu?”. Nós e o velho Museu Nacional éramos íntimos assim. Sentíamo-nos como guardiões daquele tesouro, daquele templo, responsáveis pela iniciação dos mais novos, os escolhidos da vez. “The Librarians” perde fácil, afinal, a arte apenas imita a vida.
No início da noite de dois de setembro, no fim de mais um domingo de celebração, meus olhos arregalados testemunharam assombrados o incêndio que consumiu 200 anos de história e mais de dezoito milhões de preciosidades produzidas pelo homem e pela natureza. De imediato, minha mente associou aquela imagem dramática ao acontecido em outra noite, há 85 anos, quando nazistas transformaram em cinzas milhões de livros, tentando eliminar a cultura que não se afinava com a ideologia.
No nosso caso, talvez, não chegue a tanto. O que se evidencia a princípio é o desprezo puro e simples das nossas autoridades por tudo o que não representa ganho imediato e material. Elas ignoram a cultura por falta de lastro (alguns até se vangloriam de nunca ter lido um livro) e de propósito. O conteúdo perde para a forma. A ideia perde para a propaganda.
Porém, o que importa agora é a falta, o espaço morto, a lacuna. Como vamos preenchê-lo? Como vamos revitalizá-lo? Não sei. No fundo, no fundo, considero difícil reverter a situação, mas não impossível. É preciso que a irmandade do Museu Nacional, a maçonaria daquela casa, os seus viúvos e viúvas de fato – não os inventados pela ironia burra de um político idiota - mantenham viva a lembrança, a esperança e, como nossos antepassados fizeram em muitas ocasiões, plantem boas sementes para a colheita futura. Como disse o irlandês Edmundo Burke, “um povo que não conhece seu passado está condenado a repeti-lo”.