Recentemente, li uma matéria que falava sobre masculinidade tóxica. Não sei se já tinha ouvido alguma vez essa expressão. Se sim, não havia dado muita atenção. Mas por algum motivo, desta vez, aquelas palavras saltaram em meio a tantas outras e ganharam um estranho destaque no texto. Fiquei por alguns minutos preso a elas, e confesso que continuei preso por dias após o fim da leitura.
Nasci em março de 1976. Eu, como 99% dos homens da minha geração, fomos ensinados a não demonstrar sentimentos e emoções. Aprendemos a ser duros, insensíveis e que homens e mulheres eram seres muito diferentes, separados por N fatores: meninas usam rosa, meninos vestem azul; meninas brincam de boneca, meninos com carrinhos; meninas jogam vôlei, enquanto meninos suam em partidas intermináveis de futebol. Por falar em futebol, ganhei inúmeras bolas, de todas as marcas e cores. Até um troféu eu ganhei do meu avô por parte de pai. Tudo na investida frustrada de me fazer gostar de futebol.
Também ouvíamos muitas frases como "se chegar em casa chorando porque apanhou na rua, vai apanhar de novo" ou "homem não chora, nem quando a mulher vai embora". Essa última eu até ouvia - e ainda a ouço - com certa simpatia poética, algo como uma nostalgia de uma letra de samba, quem sabe de Noel ou Cartola. E por gostar tanto de samba, nunca me privei de chorar. Chorei por apanhar uma vez na rua de um grupo fantasiado de bate-bolas no carnaval. Não apanhei de novo quando cheguei em casa. Mas o olhar de decepção do meu pai me doeu mais que as palmadas que ele sabia dar. Também chorei por amor. Comecei cedo, aos 13 anos, e nunca mais parei.
Nós, homens da minha idade, homens de meia idade, somos todos fruto de uma sociedade machista, de uma educação castradora e severa, onde não havia muito espaço para argumentação. Pra falar a verdade, havia quase nenhum. Mas mesmo frente a tantos exemplos, com tantas palavras ouvidas, aprendizados vividos e acontecimentos presenciados, no fundo, no fundo, eu discordava daquilo tudo. Ou, pelo menos, de parte.
A primeira grande decepção que dei ao meu pai foi logo cedo, por volta dos 5 anos de idade. Sou o filho mais novo, com duas irmãs mais velhas. Minha casa vivia cheia de meninas brincando o dia todo. Brincavam de casinha, de boneca, de comidinha, de tantas coreografias. Não havia meninos com quem eu pudesse brincar e aquelas brincadeiras me pareciam tão divertidas. Mas assim como eu, minhas irmãs também haviam recebido a mesma educação e me expulsavam dizendo: sai daqui, você é menino. Uma vez, muito triste, comentei com a empregada, na cozinha da minha casa, que eu queria ter nascido menina para poder brincar. Não demorou muito para que aquele comentário chegasse aos ouvidos do meu pai, que me questionou com toda indignação do mundo: "Eu sempre quis um filho homem e meu único filho homem diz que queria ser menina?!" Não havia sexualidade naquele comentário infantil, apenas tristeza e solidão.
Cresci com poucos amigos homens e muitas amigas mulheres. Não gostava dos assuntos dos garotos, que falavam sempre de brigas, carros e de futebol. Achava os meninos da minha idade bobos. Por isso sempre preferi amizades com pessoas mais velhas, homens ou mulheres. Com eles eu conversava sobre música, poesia, filmes, viagens... falava sobre os amores que eu trazia comigo e tentava entender um pouco do universo feminino. O que eu faço para conquistar o coração de uma mulher? Até hoje não descobri.
Tamanho distanciamento daquele padrão hétero-normativo me causou muitos problemas, que acabaram por deixar marcas. Eu não tinha aquele jeito masculino de sentar, de falar, de andar, tão padronizado nos homens da minha época. Até hoje ainda me acho um pouco feminino em determinadas ocasiões. Com o tempo, muitas dúvidas foram sendo levantadas a meu respeito. Por vezes, repetidas com muita certeza e maldade por quem as proferia. Pessoas se afastaram, possíveis futuras namoradas desaparecerem sem dar explicação.
Tanta porrada ao longo dos anos foi me endurecendo a couraça, criando uma crosta e me levando pra bem longe da minha essência. Tornei-me um quarentão hétero-normativo, desses que contam piadas machistas e que são capazes de tecer comentários inapropriados sobre mulheres. Ainda que lá no fundo me doam e me soem estranhos aos meus ouvidos, confesso fazê-los.
Hoje, na condição de pai, ganhei de minha esposa um exemplar de "Para educar crianças feministas: um manifesto". Espero poder dar a meu filho condições para que ele seja um ser humano melhor do que fui e sou.