A casa no estilo vitoriano tinha dois andares. No fim do corredor de quartos do segundo piso, preso ao teto, havia um alçapão, acionado por uma corrente com roldanas. Puxava-se com o mínimo de esforço e a portinhola se abria, dando passagem a uma escada de madeira que descia suavemente até tocar o soalho. Era a entrada para o sótão, um arremedo de umbral, limiar de uma região sombria, misteriosa, inquietante, povoada de fantasmas tecidos pelas lembranças dos mais velhos e as expectativas dos mais novos. Naquele lugar se escondiam sonhos, desilusões e esperanças. Nos baús empoeirados, acumulavam-se momentos de alegria, tristeza e paixão. Tudo ali tivera seu tempo e, ao menos, uma chance de dar certo. Alguns daqueles objetos, efetivamente, conseguiram a bênção da sorte, do êxito. Outros, não. Muitos quase chegaram lá, mas, por um acaso qualquer, ficaram numa curva do caminho. A maioria denotava um abandono absoluto, irreversível. Poucos repousavam serenamente, como se tivessem a certeza de que uma nova oportunidade chegaria.

De vez em quando, um dos idosos que moravam naquela casinha inglesa subia os degraus do sótão e, titubeante, tentava reencontrar um retalho de si mesmo esquecido no passado. Eventualmente, os chefes da família cumpriam o ritual de dar morada definitiva aos seus últimos pertences e fechar a tampa do baú que lhe cabia. No decorrer dessas idas e vindas, as crianças só espiavam, com o coração acelerado e os olhos úmidos de curiosidade.

A casa existia há uns bons anos e o grupo de iguais - pressupõe-se - a habitava desde sempre. É bem provável que debaixo daquele teto tenham passado várias gerações. Músicos, artesãos, operários, pequenos comerciantes, funcionários públicos e professores, por exemplo, que se sucederam no curso de décadas, ganhando a vida do seu jeito, provendo seus pares e descendentes; criando raízes, hábitos e costumes. Dentre estes, uma regra de ouro: o sótão era proibido aos menores e mais jovens. Precisavam atingir um nível não estabelecido taxativamente para a exploração daquele cômodo, um patamar de confiabilidade que dependia muito menos da idade cronológica do que da idade comportamental. Afinal, existem pessoas que amadurecem mais cedo e outras que consomem a vida no aprendizado.

Todos compreendiam a norma e a respeitavam como um dogma sagrado, até que uma das meninas subverteu a ordem. Nas altas horas de uma noite, a pequena Mary foi surpreendida no sótão. Tendo a barra da camisola nas mãos, dançava uma canção inaudível com seus pés pequeninos e rosados mal tocando as pranchas do forro. Parecia em transe. Perguntada sobre o que fazia, simplesmente respondeu que seguia a música do céu. A princípio, ninguém se importou.

Com o fato ocorrendo madrugada após madrugada, a família decidiu investigar a fundo. Reuniram-se, e Mary foi sabatinada por todos e a todos repetiu a mesma coisa: a linda música do céu não a deixava dormir. Então, ela subia ao sótão para ouvir melhor e dançar. Na tentativa de esclarecer a situação, foram realizadas várias incursões ao desvão do telhado, esquadrinhado de ponta a ponta, sem resultado prático. Levaram Mary ao psicólogo, ao psiquiatra e ao neurologista; fizeram exames, buscando na ciência a explicação. Não houve diagnóstico.

Nessas circunstâncias, quando se esgota a razão, a lógica, é praxe procurar a fé, a chave mística da religião. Carregaram a garotinha para a missa de domingo. No exato instante em que entrava na solene nave da Igreja Episcopal Anglicana, o quarteto de cordas ofereceu à inocente Mary um motivo irresistível para reiniciar o seu bailado no corredor entre bancos. Ouviam, finalmente, a música do céu. Espantados, parentada, beatos e clérigos viram a guria rodopiar em sua celebração indecifrável. ‘Que música é esta?’, indagou alguém. ‘Nearer, MyGod, toThee’ (Mais perto, Meu Deus, de Ti), disse um fiel.

Após o choque inicial, procuraram o sacerdote e contaram-lhe o acontecido. Juntos saíram em comitiva até a casa e, consequentemente, o sótão. Vasculharam tudo novamente, sem deixar escapar um alfinete. Não se sabe ao certo qual deles encontrou atrás de uma cômoda, rente ao rodapé, escorada na parede, a maleta de couro marrom gravado com as iniciais ‘WHH’. Dentro, um violino muito, muito surrado, e em seu arremate traseiro uma placa de prata com os seguintes dizeres: ‘For Wallace on the occasion of our engagement from Maria’ (Para Wallace na ocasião do nosso noivado de Maria).

O padre empalideceu e teve de ser amparado para não cair. Ele era o único a entender o que estava vendo.

Como é de conhecimento geral, toda estória vem da história. Haja vista o romance ‘Frankenstein’ de Mary Shelley, inspirado por um experimento científico no ‘Royal College of Surgeons’ (Universidade Real de Cirurgiões), em Londres no ano de 1803. Da mesma forma, o famoso livro ‘Drácula’, de Bran Stoker, foi escrito com o sangue derramado pelo príncipe Vlad Drakul da Romênia, famoso por empalar seus inimigos. Até mesmo a ‘Bela e a Fera’, conto de fadas criado em 1740 por Madame Villeneuve, foi baseado em um caso de hipertricose, a doença que deixa o corpo inteiro coberto de pelos. Ressalva feita, agora, começa a história, a parte capital e absolutamente verídica desta crônica.

via GIPHY

Em 1910, Maria Robinson ficou noiva de Wallace Henry Hartley (WHH). Para comemorar, presentou seu amado com um violino. Dois anos depois, aos 34 de idade, o músico reuniu uma pequena orquestra e embarcou em sua célebre e derradeira aventura a viagem inaugural do maior e mais luxuoso transatlântico da época, o RMS Titanic.

A partir daí, quase todos conhecem muito bem a narrativa. O inafundável gigante dos mares, com quatro chaminés, das quais a última servia apenas de enfeite; o iceberg; a escassez de botes salva-vidas, e as águas geladas e fatais da noite de 14 para 15 de abril de 1912, no Atlântico norte. Quem não leu uma reportagem, não viu um documentário ou não assistiu ao filme estrelado por Kate Winslet e Leonardo Di Caprio, com direito à canção inesquecível na voz de Celine Dion, ‘My heart will go on’ (Meu coração vai continuar)?

Reza a lenda que Wallace e seus companheiros de banda tocaram no convés do Titanic enquanto o barco naufragava, num réquiem antecipado pelas almas que estavam prestes a deixar o plano material, incluindo as suas. Apesar de não haver testemunhos integralmente confiáveis, a peça interpretada pelos rapazes seria a tal canção ‘Mais perto, Meu Deus, de Ti’. Fica no ar a interrogação, segundo a emoção e a crença de cada um.

O corpo de Wallace foi encontrado dez dias depois, boiando com o violino preso às costas. Devidamente identificado, o instrumento foi enviado à noiva, acompanhado de carta do secretário do governo de Halifax, capital da Nova Escócia, no Canadá.

Em 1939, no início da Segunda Guerra, Maria Robinson morreu e o sinistro instrumento foi doado à Cruz Vermelha, que se apressou em repassá-lo adiante para uma professora de música. Devido ao seu estado deplorável, nunca mais foi usado. Sem serventia, acabou dormente por setenta anos, largado no esquecimento de um canto de sótão, dentro de uma bolsa. Perto de tudo, longe de todos. Histórias de vida desenrolaram-se ao seu redor. Felicidades e tragédias começaram e encontraram o desfecho perante o silêncio do velho violino.

Apesar de todas as evidências - cartas oficiais, análises forenses, laudos de seguradoras, pareceres de historiadores e químicos - a peça levou quase uma eternidade para ser autenticada. Finalmente, em 2013, recebeu o reconhecimento devido e foi arrematada em leilão por trezentas mil libras esterlinas, quantia superior a dois milhões de reais. Assombrado ou não, o violino agora pode ser admirado com respeito ou vaidade pelo seu novo dono, que permanece no anonimato.

Li em algum lugar que somente alguém do ramo, uma pessoa capaz de entender intimamente cada nota musical, pode aferir o seu preço. Não o monetário, mas o valor do seu significado, da força que gerou o ato de sublime sacrifício do jovem Wallace, o noivo de Maria, e de seus companheiros de banda. Acho que não. Para mim, todos nós podemos sentir e decifrar a magia do violino e a grandeza do gesto que inspirou. Basta deixar a ‘linda música do céu’, que encantou a pequena Mary, tocar os nossos corações.

Compartilhe com seus amigos

Receba os conteúdos do Instituto de Longevidade em seu e-mail. Inscreva-se: