Mais de 50 anos se passaram desde que, em maio de 1968, a equipe do doutor Euryclides de Jesus Zerbini realizou o primeiro transplante de coração no Brasil, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. O país está, inclusive, na lista dos pioneiros na realização da cirurgia. Aqui foi realizada a quinta do mundo e a primeira da América Latina - o primeiro transplante do órgão ocorreu só meses antes, em dezembro de 1967, pelo sul-africano Christiaan Barnard.

De lá para cá, a técnica evoluiu, novos medicamentos para ajudar na recuperação e redução dos riscos pós-operatórios surgiram, o tempo de sobrevida dos pacientes aumentou. Hoje, o transplante de coração é considerado um tratamento muito eficaz em casos de insuficiência cardíaca terminal, em quadros em que não é possível fazer o controle e a reversão por meio de tratamentos medicamentosos ou intervenção cirúrgica. E isso em qualquer idade.

Porém, dois grandes desafios ainda influenciam para manter baixos os números de transplantes feitos no Brasil, em particular quando comparamos a outros países: a falta de doadores e de infraestrutura na saúde. Para se ter ideia, em 2020, no mundo, foram realizados 8.190 transplantes de coração. Só nos Estados Unidos foram 3.716. Aqui, no mesmo período, foram registrados 308 transplantes (dados do Observatório Global de Doação e Transplante/Global Observatory on Donation and Transplantation – GODT). Dos mais de 50 mil brasileiros que esperam por um órgão ou tecido, aproximadamente 30% desses acabam morrendo na fila.

E isso só piorou com a pandemia do coronavírus. Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), a taxa de doadores efetivos caiu 13% no primeiro semestre de 2021 em comparação ao mesmo período de 2020 e 18% em relação a 2019. O transplante cardíaco figura entre as maiores quedas: diminuiu 15% (1,2 por milhão de habitantes) e por diferentes razões, como o aumento na taxa de contraindicação, em parte pelo risco de transmissão da Covid-19, a queda no número de leitos disponíveis e até dificuldade em encontrar as pessoas cadastradas na central de transplantes.

E quem precisa de um coração novo?

Quatro grupos principais são apontados quando o assunto é transplantes cardíacos, com alguns pontos em comum: grande disfunção e severo comprometimento do ventrículo esquerdo e a possibilidade de insuficiência cardíaca, ou seja, quadro em que o coração não consegue bombear sangue suficiente para atender às necessidades do corpo.

O fato é que atualmente já temos medicamentos que contribuem no controle efetivo da insuficiência, porém, em algumas situações o paciente não consegue manter a estabilização de sua situação clínica, evoluindo para a chamada insuficiência cardíaca terminal, passando então ser considerado e avaliado para transplante.

O primeiro grupo é o de pessoas com miocardiopatias virais ou com miocardiopatia dilatada, especialmente em função da Doença de Chagas, ainda muito presente no país. O outro é dos pacientes portadores da doença arterial coronariana (DAC), sem possibilidade de melhora com a cirurgia de revascularização do miocárdio ou ainda com sintoma forte de angina (dor no peito) não controlado por medicamentos. Um terceiro grupo inclui aqueles com valvopatias (conjunto de doenças que afetam as válvulas cardíacas). As cardiopatias congênitas formam o último grande grupo de pacientes com patologias de alto risco cirúrgico, que na maioria dos casos entram na fila dos transplantes de coração.

Rejeição, uma vilã do passado

Entre os maiores riscos de um transplante estão a rejeição do órgão pelo corpo e as infecções. No final da década de 60, os primeiros pacientes transplantados tiveram uma evolução, uma sobrevida curta, de poucos dias. Na época, basicamente se usava o corticoide como único imunossupressor - medicamento que atua nas respostas do sistema imunológico ao novo coração.

Com o surgimento na década de 80 de novas drogas mais eficazes contra rejeição, principalmente a ciclosporina, a questão pôde ser melhor controlada. Além disso, em longo prazo, é preciso estar atento ao aparecimento de tumores e, sobretudo, da doença vascular, com a possibilidade de redução do calibre das artérias coronárias.

transplante de coração

Crédito: Billion Photos / Shutterstock

É importante ainda considerar algumas contraindicações, avaliadas antes mesmo do transplante: incompatibilidade sanguínea entre receptor e doador, pacientes com AIDS, hepatite B ou C; pessoas com diabetes insulino-dependente ou diabetes mellitus de difícil controle, obesidade mórbida, insuficiência hepática ou renal irreversível, doenças psiquiátricas ou pulmonares muito graves, quadros de infecção ativa, úlcera péptica em atividade, embolia pulmonar, câncer, amiloidose, sarcoidose ou hemocromatose.

Porém, as perspectivas são cada vez mais positivas: hoje é possível ter uma vida praticamente normal após passar por um transplante de coração. Claro que isso varia entre os pacientes, mas com os cuidados necessários e a boa recuperação, o prognóstico tem sido bem otimista e a sobrevida aumentou. A média atual é de 13/15 anos.

Estatísticas apontam que mais de 90% dos transplantados cardíacos sobrevivem após o primeiro ano da cirurgia, 75% nos primeiros cinco anos e aproximadamente 60% nos primeiros 10 anos. Há casos de pacientes com mais de 20 e alguns com até 30 anos de vida pós-transplante. No Brasil, o paciente com maior sobrevida foi um homem que faleceu em 2019 aos 83 anos. Foram 32 anos de vida após transplante, feito em 1986. O recorde mundial é de um britânico, que faleceu em fevereiro de 2016 após 33 anos da operação.

O risco aumenta com a idade?

Existem diferenças na técnica do implante do coração que podem variar conforme a idade, as patologias congênitas apresentadas e questões anatômicas que necessitam de ajustes individualizados para restabelecer a circulação pulmonar e sistêmica. Entretanto, o transplante cardíaco pode ser realizado em qualquer faixa etária, desde recém-nascidos até idosos.

Há estudos que apontam que não há diferença de sobrevida e complicações entre aqueles que já passaram dos 70 anos quando comparados aos mais jovens. Tudo varia mais em relação a comorbidades ou situação de fragilidade do organismo.

A vida depois do transplante

Em alguns casos, podemos dizer que a qualidade de vida pós-transplante passa a ser melhor do que antes. A limitação física, as dores no peito e a falta de ar somem. De uma hora para outra o indivíduo tem um coração normal, pode praticar esportes e até ser um atleta. Após o procedimento, a pessoa passa por uma primeira fase de exames regulares para avaliar, entre outros pontos, como os medicamentos estão agindo, e verificar se o corpo não apresenta rejeição. No primeiro e segundo mês, é preciso um monitoramento mais rigoroso.

É necessário evitar, por exemplo, o contato com doentes, ambientes poluídos ou muito frios. A exposição a estas situações aumentam o risco de morte em função da imunossupressão e da diminuição das defesas do corpo contra infecções. Também é importante ter uma alimentação equilibrada, seguindo orientação médica. Depois, o paciente deve se manter em acompanhamento constante com o grupo de apoio, passar em avaliações clínicas e fazer os exames periódicos, mas seguindo a vida como qualquer outra pessoa.

História antiga, problemas atuais

A falta de doadores é uma realidade. Após a morte cerebral decretada, é hora de entrar em contato com a família, que está sob o efeito de um trauma e precisa eventualmente dar o aval para que os órgãos sejam doados. Hoje o índice de rejeição ainda é alto. Segundo a ABTO, 43% dos brasileiros negam a doação de órgãos de seus parentes após a morte encefálica comprovada.

Parte é por falta de esclarecimento. Em muitos casos existe a preocupação se realmente o paciente teve morte cerebral e se isso não poderia ser revertido. É preciso, no entanto, reforçar que esses casos são muito bem avaliados e documentados. São realizados diversos exames para a confirmação.

A consequência é a grande incidência de pessoas que morrem na espera de um novo coração. O indivíduo fica no leito hospitalar em tratamento sem saber exatamente quando e se conseguirá realizar o procedimento. É preciso recursos para garantir o tempo de espera, com soluções como um coração artificial ou dispositivos de auxílio - o que não é uma realidade no país.

Assim, podemos apontar outro agravante: a estrutura de saúde. As estruturas hospitalares brasileiras ainda não conseguem dar o devido suporte para que essas cirurgias ocorram em maior quantidade. A realidade é que cada minuto importa para quem está na fila à espera de um órgão. A grande diferença do coração para outros órgãos é que o tempo é muito precioso. Tudo deve ser feito numa faixa de 3 a 4 horas, entre tirar o coração e implantar. Quanto mais rápido o órgão for captado, armazenado e transportado, maiores são as chances de sucesso na operação.

Perspectivas de um futuro melhor

De acordo com a ABTO, com a diminuição da incidência, internação e letalidade da Covid, as taxas de doações e transplantes devem aumentar no segundo semestre. A expectativa é que no próximo 27 de setembro, Dia Nacional da Doação de Órgãos, os dados sejam melhores.

Por hora, é preciso educar, informar e esclarecer a população de que morte cerebral é irreversível, investir e trazer cada vez mais transparência ao sistema de transplantes do país, além de promover a solidariedade, o ato de pensar no próximo. Quanto mais consciência por parte de todos, mais oportunidades surgem para ajudar quem precisa de um novo coração. Há muitos doentes que sofrem por um longo período. Pacientes que ficam anos internados esperando um transplante cardíaco. Quando conseguem, o que mais querem, justificavelmente, é viver. E hoje sabemos que isso é possível.

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