Desde 1964, quando compraram o imóvel, as coisas caminhavam como a propaganda do milagre brasileiro: ‘para frente e para o alto, na direção do planalto’. Estiveram em Brasília, é claro; subiram ao norte do continente, desceram ao sul, com escala na Argentina de Videla. Contudo, sempre voltavam ao apê de Copacabana. E mademoiselle junto. Sempre. Ninguém podia admitir a vida sem ela, agora, na glória de seus trinta e poucos anos.
Nair não imaginava respirar sem mademoiselle. Os vestidos não tinham graça, charme, se mademoiselle não opinasse. Os sapatos apertavam-lhe os pés, antes de mademoiselle aprovar. Foi-se afeiçoando, entregando-se, dependendo, brincando de mãezinha. Chegou ao ponto de ter mais prazer em presentear do que em comprar para si. Deixava as lojas sem nada, desde que mademoiselle vestisse o sonho, a moda. E como a delicada criatura ficava linda com as sensações da alta costura!
Passou a abrir-se sem pudor, como se mademoiselle fosse uma confessora. Revelou o assédio de um velho militar, amigo de seu padrinho; as febres que sentia nos encontros com um prático de farmácia; a amargura das ausências cada vez mais longas de Alvarenga.
Após uma dessas, Nair disse ao novo general: ‘Nerval, precisamos definir o destino de mademoiselle. Ela precisa de um futuro. Vamos adotá-la!’. Alvarenga fitou Nair, quase aparvalhado: ‘você está louca, temos nossos filhos legítimos!’. ‘Aqueles bostas’, retrucou Nair. ‘Vivem dependurados nas suas estrelas!’.
Estabeleceu-se um silêncio sepulcral. Enerval recolheu-se, mirando o chão, talvez pensando que o melhor seria usar o revólver quarenta e cinco, salvado das batalhas na Itália. Um tiro contra Nair, ou pior, uma bala contra a própria cabeça. Saiu da pequena sala da televisão e pôs-se a andar pelo apartamento, procurando alguma coisa para fazer. Cortar um ‘roast beef’, consertar uma tomada, conectar um aparelho de som. Qualquer coisa. Enerval nunca precisara de um ‘faz tudo’; afeito as tarefas caseiras, ele sabia resolver todos os problemas domésticos, desde a eletricidade até a apresentação do prato principal do jantar. Menos a questão da adoção de mademoiselle.
Passaram-se dois meses, ou quase isso. Nair voltou à carga: ‘mademoiselle precisa de uma definição, ou vamos adotá-la, ou ela vai-se embora’. Enerval capitulou. Olhou para um lugar inimaginável e disse muito sério, quase contrito: ‘reúna a família, todos sem exceção, e vamos comunicar-lhes a nossa decisão’.
No dia 27 de abril de 1986, um domingo, o apartamento da Dias da Rocha estava cheio, lotado. Três filhas e um filho, nora e genros, quatro netos e duas netas. Babás, amigos e amigas; primos e primas; algumas tias velhas resistentes, e os penetras de sempre. Apinhados na grande sala, todos esperavam o anúncio. Lá no fim da plateia, mademoiselle.
O general Alvarenga correu os olhos pelo ambiente e começou a chamada. Nome por nome, como se cantasse pedras de bingo, como se convocasse a tropa. ‘Lucas – presente. Maria Rita – tô aqui, papai. Mirtes – sim!’. E assim por diante, todos responderam.
Nerval puxou o ar que o pulmão contaminado pelo enfisema ainda permitia e, incisivo, como é de praxe dos militares, começou e terminou o discurso de um fôlego só: ‘estou me separando da Nair. Não quero choro nem vela. Vou me casar com a Lizette. Obrigado’.
Depois dos gritos, desmaios, ataques, lamúrias, xingamentos e outros que tais, todos foram embora, inclusive Nair, que passou a viver na casa da filha mais velha. No apartamento da Dias da Rocha, somente Nerval e Lizette. Nas noites de sexta-feira, lá pelas tantas, as empregadas juram ouvir uma gargalhada alta e debochada, como só a da Cotinha.