Era um daqueles apartamentos de área de serviço comprida; duas portas, uma do quartinho de empregada, outra do banheiro, espaço apenas para chuveiro e latrina. Nem pia tinha. Para serviços rápidos, o tanque, que bastava para lavar o rosto e os dentes, assim como bater a roupa íntima da família. Piso de cerâmica vermelha, paredes de azulejos brancos, encardidos. Do lado direito, os cômodos, ao contrário, a coluna de respiração do edifício.
Naquela época, Copacabana era o paraíso; as pessoas hipotecavam as calças por um três quartos, sala, cozinha e área de serviço. Sem área de serviço não tinha negócio. Nem pensar. Onde colocar as negrinhas, as crioulas, as mucamas da nova elite carioca? Longe da sala, longe dos quartos, longe da vida social, mas perto das necessidades dos patrões, ao alcance fácil dos senhores, dos donos.
Antes de Enerval Alvarenga comprar o belo imóvel na Dias da Rocha, perguntou a Nair: ‘filha, tem lugar para a Cotinha?’ Nair olhou para o céu, com seus olhos verdes estriados de castanho e um quê de enfado no semblante. Suspirou fundo e respondeu: ‘Nerval, Cotinha está velha’. O capitão Alvarenga bateu continência e deixou para lá. A pobre Cotinha já era!
Para o leitor situar-se na história, é bom mencionar que Cotinha era uma parda de sessenta e poucos anos, cria de uma negra chamada Rosa, cativa do general Hilário, pai de Nair. Rosa era criatura dos tempos em que a escravidão fazia parte do país, oficialmente. Diziam as más línguas que Cotinha nascera de um momento de paixão do general. Ninguém podia comprovar; ninguém podia sequer tocar no assunto.
Cotinha recebeu a notícia de que estava fora, com aparente tranquilidade. Não produziu uma única lágrima. Testemunhas afirmam até hoje que chegou a gargalhar debochada, quando Nair a dispensou. Não discutiu, não fez alarde. Apenas recolheu seus ‘panos de bunda’, guardou-os em uma velha mala de cartão, fechou a tampa e, um pouco antes de partir, com voz submissa, propôs uma substituta, mocinha nova, menina pronta para o serviço, recém-saída do melhor colégio de Petrópolis.
Com alguma relutância, Nair acatou a sugestão e, duas semanas depois, recebeu em seu novo apartamento da Dias da Rocha, ainda sem criada, uma garota de não mais de dezoito anos. Premida pelas circunstâncias, mal conversou com a candidata, dando-se por satisfeita com o salário acertado, pouco mais da metade do que Cotinha recebia. Sobretudo, gostou do nome afrancesado, da tez alva, dos cabelos alourados, da postura europeia.
Lizette acomodou-se e começou a trabalhar, demonstrando a cada dia ser mais eficiente e competente do que a antiga serviçal. A qualquer hora, a casa brilhava; limpa, organizada e pronta para receber todos que ali chegavam. Falava a língua dos emergentes: simples e polida quando necessário; sofisticada e insinuante quando interessava.
Nair passou a chama-la de ‘mademoiselle’: ‘Mademoiselle, meu chá! Mademoiselle, os sais do meu banho. Mademoiselle, escolha minha roupa da ocasião; mademoiselle, você decidiu o cardápio do jantar?’. Mademoiselle, já fez a lista dos convidados?’.
Com o tempo, todos se esqueceram do nome de batismo da moça. Mademoiselle tornou-se a palavra de ordem, a senha da salvadora da pátria. ‘Meu Deus, mademoiselle, a farda do coronel!’. A essa altura, Alvarenga já fora promovido três vezes, saltando de patente em patente em tempo recorde. A família prosperava.
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