Antes de ficar famoso como malandro boa praça, bem humorado e gozador, o carioca devia ser reconhecido como abraçador inveterado. Enquanto o paulista estende a mão com discreta polidez, o mineiro meneia a cabeça cordialmente, o gaúcho acena com educada cortesia,- só para ficar no sul-sudeste -, o carioca escancara os braços para anunciar que vai envolver o outro com amigável e efusiva intimidade. Faz parte da personalidade daquele que nasce na mui leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e do que se deixa conquistar e adotar pela urbe fundada por Estácio de Sá em 1565.
Quero deixar claro que o carioca não é o inventor, o dono da patente do abraço. As pessoas se abraçavam muito antes dele se apropriar do gesto, mas eram abraços com finalidade, com o propósito de expressar paixão, amizade, solidariedade, pesar, apoio, felicitação, e por aí afora. O abraço do carioca não tem motivo, não precisa de objetivo. O carioca abraça pelo puro prazer de abraçar. Pense bem: graças ao carioca o ‘forte abraço do fulano de tal’ deixou as cartas, telegramas, e-mails e demais mensagens estáticas para embarcar na energia cinética. Saiu do papel e das telas para ganhar substância, ganhar vida. E a vida, ah, a vida está no movimento, como já sabia Aristóteles há mais de dois mil e trezentos anos.
Ao contrário do que muitos possam imaginar o costume não existe desde sempre, não vem de tempos imemoriais precursores da primeira comunidade de franceses ou dos portugueses que se espremeram entre o Morro Cara de Cão e o Pão de Açúcar. Também não foi herdado dos nativos. Tupinambás e temiminós, dentre outras etnias, nunca foram expansivos. Por oposto, eram cautelosos e ressabiados, tímidos e, muitas vezes, arredios.
Na verdade, não se sabe ao certo quando o comportamento exuberante do carioca se fez notar pela primeira vez. Talvez tenha surgido aos poucos, na medida em que o sol escaldante foi tostando a tez pálida do colonizador, até ebulir nos frutos gerados pelas raças que se uniram em carne e espírito, na mistura de brancos, índios e negros. Desconfia-se que as praias abundantes e convidativas, a floresta luxuriante, as montanhas recortadas contra o horizonte, o clima de verão permanente, criaram as condições e moldaram o ambiente perfeito para formar o temperamentodo carioca e, com ele, o hábito tão acolhedor de abraçar.
Se o caro leitor perguntar aqui e acolá, se fizer uma pequena pesquisa, é bem provável que acumule mais de uma dezena de teorias diferentes. Certamente, alguém dirá que é por acaso. Outro, que vem do tamanduá-bandeira, antes tão comum na região - só que a expressão ‘abraço de tamanduá’ designa o falso amigo, e o carioca legítimo ou legitimado, de modo geral, é honesto de sentimento. Haverá entrevistado que responderá com absoluta convicção que o carioca é um abraçador por causa da sua sensualidade à flor da pele, opinião que o próximo contestará, garantindo que o hábito vem da fé, afinal, nos templos de todos os credos o abraço é celebrado como uma comunhão.
Na minha modestíssima interpretação, a prática do abraço carioca teve sua gênese na atitude simples e carregada de significado do físico italiano Guglielmo Marconi (1874-1937), o inventor do primeiro sistema de telegrafia sem fio. Na noite de 12 de outubro de 1931, o cientista festejado pela humanidade acionou remotamente da Itália a chave que inaugurou e iluminou a estátua do Cristo Redentor, fincada sobre o Morro do Corcovado, ponto elevado da maior floresta urbana do mundo, o Parque da Tijuca.
Tudo bem que a encenação de Marconi não surtiu o menor efeito e, se não fosse a habilidade do engenheiro brasileiro Gustavo Corção e de sua equipe – com destaque para Rinaldo Franco -, ainda estariam procurando o interruptor de luz até hoje.
A escultura mudou o astral da Cidade Maravilhosa e de seus habitantes. O Cristo de braços abertos, pronto para abrigar inocentes e pecadores; perene, impávido colosso recoberto de pedra sabão, seria a partir daí o zelador, ou melhor, o síndico do Rio, debruçado sobre as águas calmas da Baía de Guanabara.
A ideia inicial de construir o gigantesco símbolo augusto da paz é antiga. Data de 1859 e pertence ao padre lazarista francês Pierre-Marie Boss, capelão do Colégio Vicentino da Imaculada Conceição, que resiste heroicamente à passagem do tempo no mesmo lugar em Botafogo. Não é preciso dizer que a sugestão do religioso não vingou.
Depois de 13 de maio de 1888, data da abolição da escravatura, um grupo lembrou-se do monte de 709 metros e propôs a construção de um monumento em homenagem à princesa Isabel (1846-1921). Ela não concordou por escrito, conforme documento lavrado em dois de agosto. Quatro anos antes desse episódio, seu pai, o imperador dom Pedro II (1825-1891), cortara a fita inicial da estrada de ferro que deu acesso ao cume do Corcovado, construindo lá, no ano seguinte (1885), um gracioso mirante chamado ‘Chapéu do Sol’.
A aprovação do Cristo Redentor, considerado a sétima maravilha do mundo moderno (segundo apuração informal de 2007), data de 1912, por iniciativa de Homero Batista (1861-1924), ministro da Fazenda do presidente Hermes da Fonseca (1855-1923). Assinada e protocolada, também não saiu do papel, coisa habitual no país das fartas propostas e das raras realizações.
Dez anos mais tarde, em 1922, o assunto voltou à baila por ocasião da comemoração do centenário da Independência. Um abaixo assinado com mais de vinte mil nomes foi entregue ao, então, presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) que aceitou o pedido e mandou afixar a pedra fundamental. A partir daí, levantaram-se fundos, publicaram-se editais, abriram-se concorrências, examinaram-se currículos e tudo mais que a nossa vã burocracia exige para se alimentar de prazos, vaidade e dinheiro. No fim das contas, o projeto vencedor foi resultado de um trabalho a seis mãos: o engenheiro Heitor da Silva Costa (1973-1947) fez o desenho inicial, o pintor Carlos Oswald (1882-1971) o aprimorou, e o escultor francês Paul-Maximilien Landowski (1875-1961) modelou as peças. De todas, as únicas não construídas no Brasil foram as mãos e a cabeça, que vieram prontas de Paris.
A primeira versão apresentava a imagem de Jesus segurando uma cruz contra o ombro e um globo terrestre na outra mão. Como não foi muito bem recebida, os idealizadores resolveram modificar a concepção para o modelo atual, o belíssimo Cristo Amigo e Protetor. Transcorridos nove anos, a estátua de 1.145 toneladas estava pronta, no esplendor de seus 38 metros de altura (oito de base e trinta de imagem), abençoando o carioca e os seus convidados.
Escalado ao longo dos anos por plebeus e nobres, anônimos e celebridades, dentre os quais a repórter Glória Maria, o humorista Renato Aragão e o rei Roberto Carlos, o Cristo Redentor foi inaugurado no dia de Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil, data também dedicada à criança. Em 1981, aos seus pés, João Paulo II proferiu a seguinte frase: ‘se Deus é brasileiro, o Papa é carioca’, arrebatamento proveniente da beleza, do encanto e do amor que emanam do magnífico monumento e comovem seus antigos e novos admiradores.
Neste período atípico da história do mundo moderno, quando a angústia, o medo e a solidão se precipitam sobre todos, sem exceção, abre-se um espaço de esperança e fé para comemorar os 90 anos de idade da segunda maior representação física de Jesus em todo o mundo (o Cristo Rei da Polônia tem 52 metros). O aniversário ocorre justamente quando o carioca se vê impedido de exercitar o seu ritual mais precioso, o abraço gostoso, apertado e afetivamente genuíno. São as trapaças da sorte, as surpresas da evolução (?), os testes de resiliência. O carioca sabe disso!
Enquanto a tormenta não passa, vai se exercitando, reproduzindo a ancestral posição dos faraós do Egito - antebraços cruzados no próprio peito, com as mãos pousadas sobre os ombros. Com o distanciamento exigido, tem o mesmo significado da saudação mais querida. Além de tudo, trás um recado implícito: não perca por esperar, o seu abraço está no ponto, um legítimo e intenso abraço carioca da gema, preparado na mesmíssima fôrma da receita original, igualzinho ao que eu mando para você agora, leitor amigo.