Sabe quando você caminha sozinho e distraído pela rua deserta e ouve uma voz a chamar insistentemente seu nome? E o chamado vem de muito longe, como se fosse soprado através de um túnel? E vai crescendo e reverberando cada vez mais próximo e intensamente, até parecer que alguém ao seu lado está gritando pela sua atenção?

Pois foi o que aconteceu comigo há poucos dias, quando cruzava a velha Barão de Ubá, rua encravada na divisa dos bairros da Tijuca, Praça da Bandeira, Estácio e Rio Comprido, endereço recorrente nas minhas memórias e crônicas, lugar onde ocorreram episódios mágicos do meu despertar da fantasia para a realidade, aqui na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Um tanto vacilante, virei-me e, assombrado, dei de cara com meu tio Alcir. ‘Caramba’, disse ele, tentando recuperar o fôlego. ‘Corri quase um quarteirão berrando e nada! Parece que você anda no mundo da lua!’.

Mundo da lua!

Eu não ouvia esta expressão desde os tempos dos filmes da Atlântida, nos quais Oscarito, Ankito, Grande Otelo e Dercy Gonçalves faziam a nossa alegria com piadas ingênuas e maliciosas na medida exata. Época livre da patrulha politicamente correta; período dos sonhos povoados por Eliana, Virginia Lane e Cyl Farney. Havia irreverência, deboche, confusão, sim, por certo. Havia drama, romance e sexo, é óbvio, não há dúvida. Porém, o espírito era outro: desarmado, livre, fraterno. Ríamos, sofríamos, amávamos, chorávamos juntos, pois tínhamos certeza de que, no final, tudo acabaria bem. Afinal, a vida era uma chanchada da Atlântida!

Digressões à parte, trago de volta os fatos.

‘Oswaldinho...‘ (graças ao meu avô Oswaldo, a família inteira e alguns amigos me chamam assim até hoje) ‘... vim trazer o seu presente’. Ato contínuo, Alcir me estendeu na ponta da mão a indefectível carteira de plástico bege recheada de notas com a efígie de Pedro Álvares Cabral, aquele mesmo que descobriu o Brasil sem querer, querendo. Enquanto desfolhava as amarelinhas, fui cutucado nas costas por um dedo ossudo. Tia Linda, Lindaura Martins Rosa, viúva de Noel, já me entregava o copo americano suado de cerveja. Assim, no meio da rua. Sem cerimônia, nem aviso. ‘Faz bem aos rins’, me assegurou mais uma vez.

Oferecer cerveja na Cidade Maravilhosa é um ato que provoca, induz, incentiva a aglomeração. Em poucos instantes, tínhamos mais de duas dúzias de pessoas ao redor. Dentre elas, os tios Walter e seu charuto inseparável, Maria Emília, Waldir, Delphina, Paulo e Cremilda. Os primos, então, chegavam às pencas! Sedentos, ansiosos, muito bem dispostos e indisciplinados. À frente da turma, Ruy Quaresma, maestro, compositor, parceiro, irmão de alma. Doce como o mel. Preciso e eficaz como a abelha. Na medida do possível, apareceram outros companheiros de música. Gostei muito de rever os bateristas Fefê (Roupa Nova) e Luís Cláudio.

Não consegui identificar todo mundo. Seria impossível àquela altura; tantos me cumprimentando, todos me trazendo recordações deliciosas. Fiquei pasmo ao vislumbrar no meio daquele povo o velho camarada João Gomelita, motorista de taxi que dirigia bordões e primas com a mesma destreza, a mesma sensibilidade que tinha ao volante. Chegava remando o corpanzil, como no dia em que me salvou de uma surra colossal por causa de uma cantada bem dada. Mas, isto é um assunto que fica para outra ocasião.

A dois passos, com a discrição costumeira, me olhando de esguelha, o Soutto, meu padrinho e protetor. Homem bonito, charmoso, culto; cabeleira grisalha, dentadura perfeita, jeito malandro de ser gente boa. Sempre bem acompanhado por Don’Ana, mulher de fazer inveja ao bom gosto.

Assentei a bunda velha e magra no meio-muro da casa mais perto. Recostei nas grades de ferro carcomido e fiquei esperando, enquanto as surpresas se sucediam.

Abrindo ala na multidão, minha avó Rosalina, a Zala de Campos dos Goitacazes, com seu olhar sofrido e fundo, seu pulmão solitário, o coração enorme de bondade, o colo farto feito para o aconchego e histórias que um dia hei de contar. Trazia agarrado à saia o temporão Manoel, mais conhecido neste espaço como Poleca Meirelles - escrevi sobre ele aqui -, sujeito dos mais ordinários e encantadores que conheci. Sem deixar barato, ela reclamou da minha pouca atenção, do meu espírito aventureiro, da minha vocação para a boemia. Porém, me perdoou com o laço dos seus braços gordos, bordados de azul, e generosos.

Logo depois, tio Erasto me revelou coisas que até o próprio passado duvida; tia Nilza me benzeu contrita pela eternidade; Altemar Dutra desfiou serestas a granel, emendadas como contas pelo choro gostoso do violão do tio Milton muito bem acompanhado pelo bandolim de Jacob. Tudo sob o olhar semiapagado de prazer do mestre Baden Powell.

Confesso que, naquele momento, eu já estava passando da tampa. Queria sair dali para casa, jogar um comprimido de sonrisal em meio copo d’água e relaxar, ou melhor, desligar. Cerveja é uma delícia, mas aos litros se transforma em usina de gases poluentes. Além de tudo, o que poderia vir de melhor?

A resposta se materializou de pronto. Uma figura pequenina aproximou-se. Não me envolveu, nem poderia. Apenas espalmou sua mãozinha de dedos tortos contra o meu peito, acariciando levemente a minha mais doce lembrança, e sussurrou: ‘filho, eu te amo, e sempre te amarei’!

Pois é, meus amigos, eu resolvi escrever este texto quando li a mensagem de uma amiga reclamando da falta de seus entes mais queridos no Natal.  Segundo ela, esta data é a mais triste do ano. É quando se sente absolutamente só, dolorosamente abandonada.

Não concordo.

O Natal é um ponto de encontro. Todos nós nos juntamos neste dia. Os aprendizes que teimam em plantar nos terrenos de cá e os mestres que fazem a colheita do lado de lá. Podem acreditar: jamais estaremos sozinhos.

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