Quem viu João Carlos Cechella carregando a tocha olímpica neste ano pelas ruas de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, dificilmente imaginou que dentro dele pulsava um órgão transplantado há 27 anos. "É incrível eu estar vivendo esse tempo todo com o coração de outra pessoa. É esse tipo de coisa que eu considero fantástico na vida", afirma, dizendo ter "63 anos de carcaça e 53 de coração [idade do órgão doado]".

Militante pró-doação, Cechella diz que "ainda existe muito preconceito e desinformação, e isso dificulta a realização dos transplantes". Diagnosticado ainda jovem com uma doença de nascença chamada miocardiopatia congênita, que o levou a três paradas cardíacas aos 34 anos, o professor de educação física aposentado é o paciente de transplante cardíaco mais longevo do Rio Grande do Sul e o segundo do Brasil.

O primeiro a receber um novo coração no Brasil foi o lavrador João Boiadeiro, em 1968, poucos meses depois da primeira cirurgia desse tipo no mundo, na África do Sul. O transplante foi feito no Hospital das Clínicas da USP (InCor), em São Paulo. Mas ele viveu apenas 28 dias.  Segundo o cirurgião cardiovascular da equipe de transplante cardíaco do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, João Roberto Breda, isso desanimou a classe médica na época.

"Os transplantes foram abandonados", conta. Só com o surgimento da ciclosporina, medicamento antirrejeição, na década de 80, o procedimento foi retomado, e Cechella, em 1989, foi um dos beneficiados. Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista.

Quando jovem, e sendo atleta, o sr. imaginava que poderia ter um problema no coração?

Eu não sabia do problema. Meu pai era médico e me escondeu a condição. Morávamos numa vila próxima a Santa Maria. As coisas eram mais difíceis. Quando eu era criança, meu tio encontrou um remédio no exterior que estabilizou minha saúde. Então, tive uma infância normal. Comecei a praticar esportes, inclusive natação, esporte em que fui campeão.

Por isso o meu ritmo cardíaco era normal. Eu sentia um certo receio por parte dos meus pais, mas, até os 18 anos, eu não sabia e não tinha preocupação nenhuma. Quando entrei na faculdade, um professor queria demonstrar o funcionamento de uma bicicleta ergométrica e me ofereci como voluntário para pedalar. Foi ali que surgiu o primeiro problema.

O professor mandou um bilhete ao meu pai e, a partir daí, entrei num processo de estudo da minha condição. Mas segui com a vida normalmente: comecei a trabalhar e me formei. Depois me casei e tive filhos. Até que, aos 33 anos, qualquer tipo de atividade começou a me cansar. Achava que era gripe. Aos 34, passei a ter dificuldades para fazer coisas básicas do dia a dia. Foi então, em 1987, que percebi que tinha alguma coisa muito errada.

“[Quando descobri que só um transplante salvaria minha vida], caiu o mundo! No começo não acreditei, comecei a rir”

Como foi quando o sr. descobriu que só um transplante salvaria a sua vida?

Caiu o mundo! No começo não acreditei, comecei a rir. Mas diminuí o ritmo de tudo. Até que, em 88, tive a primeira parada cardíaca. Foi só nesse momento que eu realmente tomei consciência de que não tinha escapatória. Fui para Porto Alegre. Naquela época não havia a logística que existe hoje. Eram os próprios médicos que iam atrás da família do doador. Eu tive a felicidade de conseguir a doação de um metalúrgico de Canoas, que havia sofrido um acidente de moto. Isso faz 27 anos!

Até a época do seu transplante, no final da década de 1980, a média de sobrevida dos pacientes com um novo coração era de cinco anos. O seu procedimento foi um dos primeiros do Rio Grande do Sul  a utilizar o medicamento antirrejeição ciclosporina, que marcou o começo de uma nova era dos transplantes no Brasil?

Esse medicamento surgiu um pouco antes, em 1985. Foi na hora certa, pois eu havia tido mais duas paradas cardíacas depois da primeira. O meu procedimento foi o 10º no hospital depois do surgimento desse medicamento.

E depois, como ficaram as coisas?

Morei em Porto Alegre por um ano. Depois, voltei para Santa Maria e para as minhas atividades normais. Reassumi meu posto na universidade. Foi assim até 95, quando surgiu um problema ventricular. Daí precisei me aposentar. Passei a fazer outras coisas. Minha principal atividade passou a ser militar a favor da doação de órgãos.

O seu problema era congênito, mas, depois do transplante, o sr. passou a ter mais preocupação em ter alimentação e hábitos saudáveis?

Não. Como fui atleta, esses hábitos já estavam incorporados à minha rotina. Sempre tive uma alimentação saudável, com muitas frutas e verduras. Só que gosto muito de churrasco, e disso não consegui abrir mão. Mas nunca mais bebi, porque o álcool interfere com a medicação, que tomo até hoje. Bom, antes do transplante parei de fumar...

“Tive uma nova oportunidade de vida. É lógico que vou obedecer, levar essas regras a sério!”

É muito difícil seguir as regras de uma vida saudável?

A pessoa entra em uma certa rotina. Para todos os transplantados é assim. Tive uma nova oportunidade de vida. É lógico que vou obedecer, levar essas regras a sério! Algumas pessoas não duram muito tempo com um coração transplantado porque não conseguem seguir essas regras. Tenho de ir para Porto Alegre (300 km de Santa Maria) a cada 40 dias. Faço todos os controles que pedem. No inverno fico mais em casa, por causa da umidade baixa. Tento evitar ao máximo o transporte público e os locais pequenos com muita gente. Se precisar ir, uso máscara. Cada dia é uma vitória.

De lá para cá, o sr. passou a atuar como militante pró-doação de órgãos e a acompanhar a situação do sistema de transplantes no Brasil. A estrutura tem melhorado?

Muito! A logística melhorou. Os aviões da FAB [Força Aérea Brasileira] agora estão sendo usados para o transporte de órgãos. O número de doadores aumentou. Mas ainda não atingimos o ideal, de 17 doadores por milhão de habitantes. Hoje temos mais de 33 mil pessoas na lista de espera de diversos órgãos.

“Muitos familiares de pacientes com morte cerebral, mas coração batendo, não autorizam a doação. A sociedade ainda considera o coração com símbolo de vida”

 

O que ainda está faltando?

A criação de comissões de captação de órgãos nos hospitais. São poucos os que têm, porque é preciso oferecer UTI. E estamos com falta de vagas nas UTIs dos hospitais brasileiros. Também poderia melhorar a comunicação entre os hospitais e os centros de transplante.

Mas o mais complicado é a família fazer a doação. Pela minha experiência, vejo que a sociedade ainda considera o coração com símbolo de vida. Muitos familiares de pacientes com morte cerebral, mas coração batendo, não autorizam a doação. Trabalho muito isso nas minhas palestras. Ainda existe muito preconceito e desinformação com relação à doação. Isso dificulta bastante a realização dos transplantes.

Não adianta as pessoas que querem ser doadoras apenas fazerem carteirinha. É preciso falar com suas famílias, que têm a palavra final. Tenho feito trabalho de base nas escolas. É maravilhoso. As crianças aceitam mais do que os adultos.

Depois do transplante, o que mais o emocionou?

Conhecer a família do doador. Quando ele morreu, tinha uma filha de 10 meses, a Lílian. Eu rezava pela família do doador, mas não os conhecia. Até que a Lílian começou a me procurar. Como a minha história saiu nos jornais, não foi difícil ela me encontrar. Ela cresceu sabendo da história toda. Aos 17 anos, ela começou a tentar contato. Eu tremi na base! Nosso encontro foi no Instituto de Cardiologia, em 2007. Daí ela resolveu se casar e me convidou para ser padrinho. Mas eu não sabia que ela entraria na igreja com o padrasto, pararia na metade do caminho e me chamaria para terminar o percurso. Foi emocionante. Desde então temos muito contato. Virou uma segunda família.

Que recado o sr. daria para as pessoas hoje?

Procurem uma vida saudável, que inclua esportes, alimentação e mente saudáveis. Mantenham a mente aberta para aceitar as mudanças com a idade. Tem gente que não aceita a velhice e isso é importante. Essas coisas ajudam muito.

 

FALTAM DOADORES PARA MAIS VIDAS SEREM SALVAS

Com a retomada da realização dos transplantes de coração no Brasil, na década de 80, inicialmente houve um aumento no número de transplantes. "Como estava tudo parado, obviamente nos primeiros 15 anos houve crescimento", explica o cirurgião cardiovascular da equipe de transplante cardíaco do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, João Roberto Breda.

"De alguns anos para cá esse número se estabilizou em cerca de 300 por ano. Isso está muito relacionado ao número de doadores", afirma. Segundo ele, a disponibilidade de doadores é sazonal, sofrendo grandes baixas periodicamente: "Existem fases em que as organizações de procura de órgãos, apesar de identificar casos de morte encefálica, não conseguem captar doadores".

Para ele, as fases de aumento de captação coincidem com as campanhas de conscientização e divulgação sobre a prática. "Por isso acreditamos que o que leva à queda nas doações é a falta de informação."

Outra parte do problema indicada por Breda está na classe médica. "É preciso conscientizar as equipes médicas a manter adequadamente o paciente viável para transplante com morte encefálica. Senão muitas vezes os órgãos acabam sofrendo de modo irreversível", conta. E o coração, segundo ele, é o mais sensível de todos. "O portador de morte encefálica tem de receber cuidados muito específicos."

As pessoas que apresentam doença isquêmica do coração (obstrução nas artérias coronarianas) e os portadores da doença de Chagas formam hoje de 70% a 80% da lista de espera de transplante de coração, de acordo com o especialista.

No caso da doença isquêmica, principal complicação relacionada aos infartos, os fatores de risco são hipertensão, diabetes, obesidade, níveis altos de colesterol, tabagismo e sedentarismo.

"Há fatores hereditários, como o diabetes, mas, o estilo de vida influencia muito. Mesmo porque as doenças hereditárias podem ser controladas com mudanças no estilo de vida", aconselha.

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