A luta pelos direitos da mulher não é algo novo, mas ainda há muito a ser conquistado. Durante todo o processo de reconhecimento de direitos e de espaço de fala, as mulheres começaram a ter mais oportunidades. No caminho, no entanto, a diversidade feminina e o poder de escolha da mulher seguem sendo questionados.

As decisões de uma mulher, escolhas que deveriam levar à liberdade, são sinônimo de crítica. Uma feminista pode se tornar mãe? Uma mãe deve focar no trabalho? Abrir uma empresa é coisa de mulher? Não ter filhos torna uma mulher menos mulher?

Tais questionamentos colocam as mulheres em “caixinhas”, como se as escolhas se anulassem entre si. Quando, na verdade, ser mulher é diverso e plural, sendo repleto de oportunidades capazes de construir e desconstruir a vida de uma pessoa.

O processo de construção de personalidade, como pessoa e como mulher, por exemplo, ainda está acontecendo na vida de Telma Camargo e de Elaine Reis.

Uma vida inteira para se construir como mulher

Professora universitária aposentada, Telma, aos 70 anos, é apaixonada por tango e atua em um projeto de encadernação artesanal. Sua construção como mulher é resultado da sua história de vida e das escolhas.

Com um longo histórico acadêmico, a antropóloga teve a vida muito focada na academia, no ensino, na pesquisa, na elaboração de artigos, na organização de eventos acadêmicos e participação em seminários.

Além da atuação na Universidade Federal de Goiás, ela viveu os movimentos sociais na década de 80, após fazer seu mestrado em Paris, entre 1975 e 1977. No seu retorno ao Brasil, atuou como militante do movimento feminista e se envolveu com atividades relacionadas ao cinema e à fotografia.

Telma reconhece seus privilégios como pessoa branca de classe média, porém eles não anulam seu esforço e dedicação aos estudos e à pesquisa. Conseguir a bolsa para estudar em Paris, além de marcar a sua história acadêmica, foi fundamental para o seu processo de independência diante de uma família tradicional e conservadora.

Ao falar sobre a liberdade, ela conta que acredita que esse processo começa com a ruptura com os projetos familiares. No seu caso, a ida para Paris logo após o Maio de 68, movimento social e estudantil, e a forte influência da escritora e ativista social francesa Simone de Beauvoir, marcaram sua visão de mundo. Segundo Telma:

“Voltar para o Brasil, que ainda vivia sob uma ditadura, e vivenciar esse movimento de redemocratização que aconteceu no país na década de 80, junto com os ideais que eu passei a conviver e a compartilhar nessa Paris da década de 70, trazendo comigo o movimento feminista que eu conheci na França e gritando no movimento feminista do Brasil são processos dessa busca da liberdade, de conquista e de poder seguir os projetos que eu defini para mim.”

Telma Camargo, em frente a uma obra, na Galeria Daniellian, da exposição Crédito: Telma Camargo, em frente a uma obra, na Galeria Daniellian, da exposição "Mulherio"/Arquivo pessoal

As escolhas femininas

Nem sempre a maternidade é uma decisão. Porém, o mais provável é que, escolhendo ou não, ser mãe seja alvo de algum tipo de crítica. No ano de 1989, a filha de Telma nasceu e a sua primeira infância foi marcada pelos compromissos acadêmicos dos pais, que decidiram fazer doutorado em Nova York.

“Foi uma opção corajosa, vamos dizer assim. Saí do Brasil com um bebê com menos de dois anos, para uma cidade enorme e duas pessoas da família fazendo doutorado ao mesmo tempo. Claro que foi uma opção consciente, mas ao mesmo tempo esse projeto de  maternidade, doutorado pleno e quatro anos no exterior envolveu um excesso de trabalho enorme e um certo sentimento de culpa. Acho que isso é muito próprio de mulheres mães profissionais.”

Ser mãe e ser pesquisadora fizeram parte de projetos de Telma, envolvendo a vida pessoal, familiar e profissional. Decisões essas que foram conscientes, mas, no momento em que são expostas, são questionadas.

“No passado, eu tinha grande visibilidade por conta do movimento feminista, eu estava escrevendo em jornal, dando entrevista de televisão e por aí vai. Uma crítica muito forte que eu recebi nesse período, por incrível que pareça, foi quando eu fiquei grávida e minha filha nasceu em setembro de 89. Foi um espanto de algumas pessoas com a ideia de que ‘mas como feminista fica grávida?’.

Das críticas que eu lembro, essa foi uma que me atingiu diretamente. Como se feminista não pudesse ficar grávida, não pudesse maternar. Dizer que você não pode ficar grávida,  maternar, sendo uma feminista  foi um equívoco que perdurou muito durante um certo tempo.”

Sempre movida por projetos

Após se aposentar, aos 48 anos e movida por questões de legislação, Telma se manteve atuando como professora voluntária. Até que, então, decidiu não se envolver mais com a academia, mesmo com toda a sua importância na antropologia brasileira e internacional. “Eu já contribuí o suficiente”, foi o que pensou na época. Até por essa escolha, ela foi questionada e cobrada.

Mas, seguindo sendo movida por projeto, o tango, que fazia parte da sua vida mesmo antes do rompimento com as instituições acadêmicas, é o que mais a cativa hoje. Ela conta que se sente profundamente feliz e o outro  projeto que a move é da encadernação, na qual cria para que outras pessoas construam as suas narrativas.

“Eu não tenho uma única identidade. Isso, para mim, está muito claro. Eu sou múltipla e quero a liberdade de vivenciar essa multiplicidade que eu sou.”

Mulher e mãe

O processo de construção de uma identidade, muita das vezes, passa pela desconstrução. Elaine Reis, professora de língua inglesa de 47 anos, vive e viveu a desconstrução de ser mulher durante o seu processo de amadurecimento. Ela, uma mulher que optou pela maternidade, viu nesse processo as dificuldades que o corpo feminino pode passar.

Seu sonho era ser mãe e, por conta da endometriose, esse desejo não pôde se realizar por meio de uma gravidez. Há cerca de 12 anos, Elaine considerava essa incapacidade física como um fator que a tornaria menos mulher. Um processo doloroso, principalmente ao ver outras pessoas ao seu redor engravidando.

Inseminação, tratamentos, cirurgias. Elaine precisou aceitar que o seu corpo feminino não estava apto para a realização de seu sonho.

A decisão, juntamente com o seu marido, foi a adoção. Mais um processo doloroso, já que a fila de espera e a burocracia despertam a ansiedade daqueles que sonham em ser pais. Uma gravidez sem a tradicional espera de nove meses, sem as dúvidas sobre quais características a criança vai puxar dos pais e, claro, com as críticas da decisão da mulher. Afinal, essa mãe não iria amamentar uma criança e, para muitos, isso não seria natural.

O sonho da mulher mãe não foi deixado de lado. Na adoção, um menino se tornou o filho do casal, trazendo muita felicidade e realização. Porém ser mãe e mulher carrega um peso de responsabilidades que exige muitas decisões, anulações e desconstruções.

Hoje, Elaine não sente que a incapacidade de engravidar a torna menos mulher. O tempo e o estudo ampliaram a sua visão de mundo.

Mulher, mãe, esposa

Devido a necessidade de terapias especiais para o filho, uma carga horária de 40 horas semanais, além de provocar o desgaste, ainda promovia a preocupação com a criança. Decidir, então, pela maternidade, focando menos no trabalho, foi uma escolha calculada.

“Trabalhei uns 10 anos como secretária e depois como professora. Como meu filho tem algumas necessidades especiais, eu senti dificuldade em ter uma carga de trabalho grande. Amigos não entenderam. Não entendem. Por isso eu reduzi muito a minha carga de trabalho para me dedicar a ele e não me arrependo. Porque se eu fizesse o contrário eu não estaria feliz, não estaria tranquila.”

Mas e o trabalho? Quais os seus planos? Quando vai voltar? O que você fica fazendo à tarde? Questionamento que surgiam enquanto Elaine se dedicava - e ainda dedica - aos cuidados de seu filho. Assim como aconteceu com Telma, as escolhas maternas de Elaine sofreram críticas.

Uma mulher acolhida

Diferente de outras diversas mulheres, Elaine foi acolhida por seu marido. Essa situação, que deveria ser normal, infelizmente não é uma realidade de muitos. No Brasil, de acordo com levantamento da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC), em 2020, 6,31% das 1.280.514 crianças foram registradas apenas com o nome das mães.

Para Elaine, que mora em São Luís do Maranhão, longe de sua família do Rio de Janeiro, ter o apoio do marido em sua maternidade fez toda a diferença em suas escolhas. Tanto no momento em que decidiu ter um filho, quanto na escolha de reduzir a carga de trabalho, e, mais tarde, na decisão de fazer o seu mestrado, em 2020.

“Em situações em que o filho precisa de cuidados mais específicos de terapia ou mesmo comportamental a mudança para uma rotina mais pesada, por muitas vezes, faz com que o pai não aguente e prefira viver sozinho, deixando todo o cargo da mãe quando esses cuidados deveriam ser divididos. Eu realmente sou privilegiada por ser uma exceção a essa regra em nosso país. Porque o meu marido consegue dividir o tempo para as questões de cuidados do nosso filho e as questões financeiras.”
Elaine Reis em uma vinícola em Évora, Alentejo, Portugal. Imagem para ilustrar a matéria sobre escolha da mulher.

Crédito: Elaine Reis em uma vinícola em Évora, Alentejo, Portugal/Arquivo pessoal

É preciso desconstruir para construir

Famílias tradicionais e conservadoras podem cultivar pensamentos mais limitados sobre a liberdade da mulher. Os estereótipos acabam passando de avós para pais e filhos e, com Elaine, não foi diferente. O estereótipo da mulher, dos negros, dos homossexuais e até mesmo de pessoas com deficiência foram conceitos que precisaram ser rompidos.

“Antes eu tinha esse preconceito de tudo. Hoje eu tenho a cabeça muito diferente do que eu tinha a dez anos atrás. Até mesmo por questões de pessoas com com necessidades especiais, de ter um olhar diferente. O meu olhar para o outro mudou muito nesses últimos dez anos. Isso me faz estudar, ler, conhecer e passar isso para as pessoas que estão à minha volta.”

Na história de sua família, a irmã mais velha engravidou antes do casamento. A mãe, então, criou Elaine de uma forma um tanto mais rígida. E, depois de tantos anos, compreender e olhar com carinho para o passado é, também, um processo de autoaceitação. Ver a situação da irmã, que se casou e tem uma família estruturada com o pai de seus filhos; aceitar as inseguranças da mãe, que se tornou rígida pelo medo; e entender as próprias inseguranças, que foram construídas por sua história, demanda muito afeto e amor. Tanto para com os outros quanto para si.

O autoconhecimento, a autoaceitação e o autocuidado são formas de se olhar, olhar para o passado e construir o presente e o futuro. Ao escolher mudar a visão sobre os outros, Elaine mudou a forma como se via, se dando mais liberdade para escolher ser o que quisesse.

Até porque, em um processo de amadurecimento e envelhecimento, se olhar com carinho, diante de todas as exigências sobre a mulher, é uma forma de resistência.

A cobrança da mulher perfeita

No caso de Elaine, as exigências foram relacionadas à maternidade e também à aparência. Se quando criança, sua dificuldade era lidar com o cabelo cacheado, hoje, os traços naturais da maturidade e a feminilidade também são alvos de crítica. Afinal, mulher pode envelhecer?

“Muitas das vezes um cabelo mais seco, mais ressecado, ou mesmo um cabelo crespo pode trazer a sensação de maus-tratos. Mas isso não é a verdade. Essa carga é muito pesada para as mulheres. A exigência de estar no padrão.

Então as rugas também vão aparecendo e é a idade. É normal, todo mundo vai ficar velho, mas têm as cobranças. Essa cobrança das mulheres estarem sempre impecáveis é cruel e sempre me fez mal.”

Quando os pais de Elaine faleceram, em 2019, sua decisão foi fazer uma tatuagem. Mas nem sempre esse foi um desejo. Sua irmã, que sempre quis, viveu o seu luto e então fez suas tatuagens. O incentivo fez nascer uma faísca em Elaine, uma vontade de transformar aquele corpo que sempre “andou na linha”. Uma tatuagem em um lugar visível. Uma Elaine que podia fazer o que quisesse, sem ligar para críticas.

“Hoje eu me aceito muito mais do que quando eu tinha 15 anos de idade. Eu devo isso à maturidade, à minha saída da casa dos meus pais, ao suporte do meu marido, que sempre foi um um amigo e ao olhar o mundo fora da minha bolha.

É sobre ter todas as possibilidades à minha disposição e poder escolher o que eu quero. Ter a liberdade de seguir o que quero, o que me sinto mais confortável sem precisar que tenha um um aval das pessoas. Não me importo mais se estou agradando. O que importa é eu estar bem, me sentir bem nos lugares.”

Uma escolha da mulher e sua liberdade

Tanto Telma quanto Elaine passaram por diversas situações em que suas escolhas foram questionadas, principalmente por serem mulheres. Contudo, elas reconhecem que o processo de construção de suas histórias não é linear e é contínuo. Para Telma:

“Existem processos e são processos pelos quais a minha trajetória de vida foi sendo construída, sempre procurando me libertar daquilo que me prende, daquilo que me amarrava, daquilo que me amarra”. Ela ainda completa:

“Posso dizer que eu fui me construindo com essa liberdade e a liberdade não é dada. Nesse processo de me fazer mulher, de me construir como mulher, eu fui rompendo com aquilo que me amarrava, com as fronteiras que me limitavam enquanto pessoa mulher, nessa construção que é longa. Afinal de contas, são 70 anos. Eu ainda acho que tem muitas fronteiras a serem rompidas e eu estou caminhando.”

Elaine pontua que suas escolhas são sobre a sua vida. Mesmo que possam servir de exemplo para outras mulheres, são escolhas pessoais. Amigas se sentem mais felizes ao sair de casa para trabalhar. Assim se satisfazem e não há problema algum nisso. Pois essas decisões são e sempre serão individuais. Ela diz que:

“A generalização não é legal em nenhum caso, em grupos, para pessoas ou situações. Portanto, o que foi bom para mim, o que foi o que eu decidi para minha vida, pode ser completamente diferente de uma outra mulher. E tudo bem.

As mulheres precisam primeiro estar confortáveis consigo mesmas, fazendo o que se sentem melhor. Cada uma precisa analisar a sua vida diante de todas as circunstâncias,  sejam elas financeiras ou de rede de apoio. Para que possam, ao final do dia, falar ‘eu fiz o melhor que estava ao meu alcance e isso é o suficiente’.”


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