Em outubro deste ano, chegou às lojas e aos aplicativos de música o disco “Gatos e Ratos”. Roqueiro, o trabalho traz dez faixas inéditas com títulos como “Trânsito”, “Cobrador de Impostos” e “Açúcar Mascavo”. O autor da obra não é nenhum jovem revoltado e com tendências veganas. Mas, sim, um senhor de 68 anos, que fez muito sucesso nos anos 70 do século passado, com canções em que pedia para a mulher parar de tomar a pílula ou prometia tirar prostitutas “desse lugar”: o velho e bom cantor e compositor goiano Odair José.

Um pouco antes, em agosto e setembro, os já não tão Novos Baianos lotaram casas de show em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. O motivo da reunião da banda foi a releitura do LP “Acabou Chorare”, obra-prima da música brasileira lançada em 1972. Já sessentões, Moraes Moreira, Baby do Brasil, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão mostraram que ainda têm muita lenha para queimar e que músicas como “Preta, Pretinha” e “Brasil Pandeiro” não perderam o viço.

Às 4h de domingo, 22 de maio deste ano, durante a Virada Cultural de São Paulo, Tony Tornado, Lady Zu, Di Melo e Carlos Dafé fizeram a praça da República cantar junto sucessos como “BR-3”, “A Noite Vai Chegar”, “Kilariô” e “Pra que Vou Recordar o que Chorei”, respectivamente.

Encarados inicialmente como vilões e usurpadores do talento alheio, os DJs foram grandes responsáveis por esse resgate musical

Quem já compareceu a shows recentes dos artistas acima pôde constatar que o público não é formado apenas por cabeças grisalhas, que ouvem as músicas com a mão no peito, apertado pela saudade de um tempo bom que não volta nunca mais. No meio delas, havia muitos rostos que ainda duelam com espinhas. Há explicações para o fenômeno que vão muito além da saída fácil do “ah, no meu tempo tudo era melhor”.

Encarados inicialmente como vilões e usurpadores do talento alheio, os DJs foram grandes responsáveis por esse resgate musical. Inicialmente foram os gringos, que começaram a embalar festas no exterior com faixas como “Mentira”, de Marcos Valle, ou “Imunização Racional (Que Beleza)”, extraída do raríssimo LP “Racional, Volume 1”, lançado por Tim Maia em 1975. Depois de importar contêineres com esse material riquíssimo, mas que estava em baixa por aqui, esses DJs passaram a lançar coletâneas em CDs com títulos como “Brazilian Rare Grooves” e “The Brasileiro Treasure Box of Funk & Soul”.

O DJ britânico Gilles Peterson deve boa parte da sua fama ao seu trabalho de garimpo, que trouxe para ouvidos contemporâneos a música balançante feita no Brasil nos anos 70. Outro súdito da rainha que ajudou a resgatar esses artistas foi David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads. Ele fundou um selo chamado Luaka Bop, que, entre outros, propagou a obra de Tom Zé e Mutantes.

Com o exemplo vindo de fora, começaram a pipocar ou a ganhar um público renovado festas no Brasil animadas por canções com mais de três décadas de vida. Instalado em um salão sem muitas frescuras no centro de São Paulo, o Green Express faz casais rodopiarem ao som de músicas como “Os Alquimistas Estão Chegando”, de Jorge Ben, “Kriola”, do Trio Mocotó, ou “Falador Passa Mal”, dos Originais do Samba. Repertório parecido anima as noites organizadas pela equipe de baile Clássicos da Nostalgia.

Com um leque de estilos mais amplo, a balada SambaCana Groove sacodiu o icônico prédio do Copan, em São Paulo, entre 2004 e 2010. Ali, dançava-se ao som de “Cavaleiro de Aruanda”, do Ronnie Von, “O Vira”, dos Secos & Molhados, e “Emoriô”, da Fafá de Belém.

Ainda ativa, a festa Trash 80’s nasceu como uma brincadeira, um espaço para se divertir com um repertório considerado mais, como o próprio nome diz, trash. A coisa deu tão certo que reativou carreiras dadas como encerradas. Exemplos são a paraguaia Perla, Ovelha, Gretchen e, principalmente, Sidney Magal. Difícil uma noite em que os frequentadores voltam pra casa sem saracotear ao som de “Sandra Rosa Madalena” e “O Meu Sangue Ferve por Você”. Em algumas datas especiais, os artistas se apresentavam ao vivo na balada.

A internet e os aplicativos de ouvir música podem ser considerados bandidos ou mocinhos na história do resgate dessas pérolas musicais

Com as portas reabertas por festas como essas, os cantores encontraram palcos dispostos a receber aquela música redescoberta. Seus nomes passaram a ser comuns na agenda do Sesc, por exemplo. Mas a grande vitrine para a reencontro com músicos rotulados de brega, sambistas da antiga, roqueiros calvos e mestres do soul e do funk brasileiro dos anos 70 é a Virada Cultural.

No palco do Largo do Arouche, dedicado ao brega, já foram cantados sucessos como “Moça”, por Wando, “Cadeira de Rodas”, de Fernando Mendes, “Mon Amour, Meu Bem, Ma Femme”, de Reginaldo Rossi, e “Charlie Brown”, de Benito de Paula. Este último se apresentou na Virada de 2012 e motivou um caso que exemplifica o atual estado das coisas. Um casal de adolescentes chegou atrasado ao show. Esbaforido, a metade masculina do par cutucou as minhas costas e perguntou: “Moço, ele já cantou ‘Retalhos de Cetim’?”.

Outro movimento que tem trazido a música de outrora a ouvidos jovens é o culto ao vinil. Por conta dele, é cada vez mais comum encontrar meninos e meninas empoeirando os dedos nas lojas e feiras que se dedicam a vender os antigos bolachões. Além da qualidade sonora, esses novos ouvintes são seduzidos pela beleza e informações das capas e estão dispostos a uma audição mais comprometida da música. É gente pra quem não é mais necessário explicar o que significa a expressão “lado B”.

Dependendo do ponto de vista, a internet e os aplicativos de ouvir música podem ser considerados bandidos ou mocinhos na história do resgate dessas pérolas musicais. De um lado, eles aceleraram a derrocada das grandes gravadoras e do modelo de negócio com que se ganhava dinheiro com música. Por outro, fornecem uma quantidade de informação e possibilidades que deixa qualquer artista, por mais obscuro que seja, a um clique de distância.

Ao mesmo tempo em que é inundado por clipes de sertanejos universitários, new pagodeiros e pop importado, o YouTube permite que se passe horas acompanhando performances de Clara Nunes, Nelson Ned, Banda Black Rio e Waldik Soriano no auge de suas carreiras. Apple Music e Spotify têm bibliotecas que permitem aos mais curiosos encontrar preciosidades como “Bilu Teteia”, de Mauro Celso, “Segura Este Samba – Ogunhê”, de Osvaldo Nunes, “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio, ou “Mosca na Sopa”, de Raul Seixas.

Nessa operação de resgate, não pode ficar de fora a importância de músicos contemporâneos que revisitam um repertório temporalmente distante da música brasileira. É o caso das cantoras Ana Carolina e Marcia Castro, que fizeram releituras da canção “Coração Selvagem”, lançada por Belchior em 1977. Trabalho similar fez a também cantora Céu, que encontrou e deu vida nova a “Visgo da Jaca”, composição um tanto escondida no LP “Canta, Canta, Minha Gente”, sucesso retumbante de Martinho da Vila em 1974.

Para finalizar, um aviso importante: a função deste texto não é, nem de longe, defender a falsa tese de que a música do passado era melhor. Tem muita coisa boa feita hoje e que, daqui a quatro décadas, vai motivar um artigo como este. Sobra até uma ponta de inveja de quem está tomando contato com esse repertório só agora. A facilidade de acesso e informação era uma commodity rara no tempo em que foram compostas as músicas citadas aqui. Como sempre, o melhor tempo para ser jovem é agora.

Leia também: Novela para escutar http://institutomongeralaegon.org/artigos-em-destaque/novela-para-escutar  

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