As pessoas se engavetam,
as almas se arquivam,
os espíritos se internetam.
Apenas eletrônica, a amizade
em bits se multiplica, omissa.
Ela se abre, não mais escolho.
Nas aleijadas calçadas,
camelôs.
Onde teu calor humano,
minha friorenta cidade,
hoje deserta
e assombradiça?
(trecho da poesia “Inverno na Cidade”, de Alberto Gattoni)
O publicitário Alberto Gattoni, 76 anos, sempre gostou de poesia. Começou a rabiscar as primeiras linhas aos 14 anos, sem imaginar que um dia publicaria seus escritos. Com o tempo e o incentivo daqueles que o rodeavam, principalmente das filhas, isso acabou acontecendo, aos 65 anos.
Mas não parou por aí. Há cerca de três anos, ele também criou o Sarau do Gatto, que, em setembro, estava em sua 31ª edição. Realizado todo primeiro sábado do mês, no hostel de uma de suas filhas, no Pacaembu (SP), o programa reúne pessoas de todas as idades, que aparecem para ouvir poesia, música, canto, dança, contação de histórias e tudo o que o próprio público tiver para oferecer - a participação é livre.
"Não é para promover a minha poesia, pois eu nem gosto dela. É para promover esse encontro", diz ele, preocupado com o distanciamento entre as pessoas, como já se percebe na poesia “Inverno na Cidade”, publicada no livro "Verso e Anverso" (São Paulo, SP, 2010), com trecho reproduzido acima.
Os encontros, no entanto, estão precisando de mais jovens, segundo o próprio criador. "A juventude não lê, muito menos poesia", afirma. Para ele, quanto mais faixas etárias melhor. "Enriquece a troca de ideias, promove mais interatividade."
A escritora Vilma Ary, 78 anos, que já publicou um livro de poesias e quatro romances, foi levada pela primeira vez ao Sarau do Gatto por um amigo e virou frequentadora. "Nunca tinha lido minhas poesias em público. Achei muito interessante!" A escritora conta que, antes disso, não sabia como os outros reagiam à sua obra. Para ela, outro lado positivo do sarau é descobrir novos escritores e inspirar quem nunca escreveu.
O professor de inglês Fábio Ramos, 35, poeta nas horas vagas com livros já publicados, concorda. "No começo vim por curiosidade. Achei o clima bem legal, as pessoas estão sempre interessadas no que você está declamando, além de ser uma oportunidade de conhecer gente nova." Ele conta que, conforme o tempo foi passando, o sarau foi virando um encontro de amigos. "Além da poesia, conversamos sobre as nossas vidas e, depois, a vida acaba virando poema."
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Alberto Gattoni.
O sr. escreve desde os 14 anos. Chegou a trabalhar com texto?
Nunca trabalhei com textos, nem minha profissão exige. Sou publicitário de formação e representante comercial. Trabalhei na indústria por muitos anos. Fiz muita coisa na vida, mas nada que se compare ao currículo do Obama.
Quantos livros já publicou? Conseguiu encontrar editora interessada?
Apenas dois: "Notas Poéticas" [Coletânea I, esgotado, ed. Harley] e "Verso e Anverso" [São Paulo, SP, 2010], em parceria com o jornalista Carlos Moura. O primeiro teve o interesse de uma editora, mas o segundo lançamos por conta própria, com alguns patrocínios. Vendi os primeiros até cobrir o custo. Agora não vendo mais. É muito difícil vender livros!
O publicitário Alberto Gattoni na 31ª edição do Sarau do Gatto; crédito: Renata Gaspari
Como começou o Sarau do Gatto? Qual a média de participantes?
Na época em que a Andrea [filha] alugou o imóvel para fazer o hostel, eu participava de outros saraus na cidade. Um dia, numa conversa em família, surgiu a ideia de organizar um ali. Foi uma ideia brincante que deu certo. Em média, temos de 50 a 60 participantes por sarau.
“[Os mais velhos podem ensinar aos mais jovens] quase todo o conteúdo do espírito em forma de palavras”
Qual a média de idade do público? Por que o sr. quer mais jovens?
A média deve estar um pouco acima de 50 anos, justamente as pessoas que já trazem um conhecimento e/ou uma vivência poética do passado. Os jovens ainda não adquiriram essa bagagem e é urgente que a adquiram, antes que se perca.
A poesia é importante demais na vida das pessoas e na história da humanidade. Transforma as pessoas. Na presença dela, a violência cessa. E os jovens precisam se orientar melhor em termos de educação e cultura. Não me refiro só ao ensino regular. É preciso conhecer literatura, saber o que ela traz de bom para eles.
O que os mais velhos podem ensinar aos mais jovens?
Quase todo o conteúdo do espírito em forma de palavras. Quase todo porque o que faltar será completado por eles, os jovens.
O que os jovens podem ensinar aos mais velhos?
O jovem tem muito a ensinar sobre o mundo moderno. Aprendo até hoje com as crianças. Jovem, traz o teu grito!
“Faz-se, do convívio [no sarau], uma amizade. E amizade é simpatia, e simpatia, segundo um poeta, é quase amor”
Qual o feedback que o sr. recebe do público participante do sarau?
Recebo muitas palavras de incentivo, muitos depoimentos espontâneos dizendo que as pessoas se sentem bem. Faz-se, do convívio, uma amizade. E amizade é simpatia, e simpatia, segundo um poeta, é quase amor. Acho que as pessoas saem de lá mais leves, mais em paz consigo mesmas e com o próximo.
O sr. vê os participantes fora dos saraus? Eles se tornam seus amigos?
Sim e, neste caso, vale o princípio da física de que os opostos se atraem. A amizade e o companheirismo tornam-se implícitos. Costumamos nos encontrar em outros saraus, aniversários, passeios pelo centro etc.. O sarau ampliou minha sociabilidade. Eu tinha medo de falar em público, agora me curei _ sem remédio!
“Depois de um certo tempo de frequência ao sarau, a pessoa aparece e diz: ‘Olha, escrevi uma coisinha’. Não importa se é bom ou ruim. Ter a coragem de mostrar é grandioso!”
Algum frequentador do sarau já se tornou escritor/poeta?
Com certeza isso aconteceu, mas não com muitos. Vejo, porém, que muitos têm vontade. Depois de um certo tempo de frequência ao sarau, a pessoa aparece e diz: "Olha, escrevi uma coisinha." Não importa se é bom ou ruim. Ter a coragem de mostrar é grandioso!
Tira a pessoa do fundo do poço, se for o caso. Vi isso acontecer. A pessoa tira de lá de dentro algo que ela nem sabia que estava lá. Não necessariamente parte para um livro depois, mas já vi acontecer! Não por mim ou pelo sarau, mas pelo encantamento que as palavras trazem por si só.
De que maneira o sr. acredita que a poesia pode ajudar a vida das pessoas?
A prosa mostra a essência das coisas; a poesia, sua essencialidade. Há uma diferença espantosa para quem quer vê-la. A partir daí, levita-se. Isso quer dizer que o autor sempre quer mostrar a essência de algo. E a poesia mostra mais do que isso. A pessoa passa a enxergar atrás de um espelho. É o afloramento da alma.