Cinema, muito além de simples entretenimento ou definições do tipo “a sétima arte”, é uma forma de entender o mundo. É o que pensa o músico aposentado Rodolpho Vianna, de 84 anos, que frequenta as salas escuras da capital paulista “desde que se entende por gente”, em suas próprias palavras.

Esse costume permanece nos dias de hoje. Vianna transita pelo circuito Augusta-Paulista-Frei Caneca, onde se concentra a exibição de filmes mais autorais e menos comerciais. Seu reduto preferido é o CineSesc, na Augusta, em cujo saguão costuma tomar café quase todas as tardes.

Mas se engana quem enxerga essa cena como uma espécie de tributo à simplicidade dos prazeres diários da vida. A relação do músico com a paixão pelas telas é bastante dicotômica.

Isso porque, em seu ponto de vista, a produção cinematográfica brasileira e mundial piorou muito nos últimos tempos, e essa decadência seria resultado direto de uma espécie de embotamento social. “As pessoas se transformaram em lesmas que passam umas por dentro das outras sem nem perceber”, poetiza. “Têm inteligência de ameba, sem querer generalizar.”

“Hoje as pessoas já saem do cinema olhando para seus celulares e não querem saber de mais nada” 

Ele não tem medo de se expressar – e sabe que isso pode ser incômodo. “Não vai ouvir de mim coisas bonitas”, diz. Mas incomodar não é, de fato, o real papel da arte? A verve de Vianna é a de um Glauber Rocha, ou de um Nelson Pereira dos Santos, diretores dos quais fala com saudosismo.

Pensavam de forma revolucionária, queriam mudar o Brasil”, afirma. “Os cineastas brasileiros de hoje não sabem de nada, só querem falar de tecnologia. Glauber, por exemplo, tinha uma equipe pequena. Nos créditos dos filmes de hoje você vê os nomes de centenas de pessoas e as produções são umas porcarias.”

O Cinema Novo de Glauber Rocha e a francesa Nouvelle Vague (nova onda, em português) foram movimentos estéticos cinematográficos que dialogavam com o modo de vida mais engajado, política e socialmente, de quem assistia aos longas dessas escolas. Eram os anos 1960, tempo em que Rodolpho Vianna flanava entre cinemas de rua como Paulista, Picolino e Majestic.

“Saíamos do Belas Artes, na Consolação, direto para o Bar Riviera, onde discutíamos nossas impressões sobre os filmes até as quatro da manhã”, lembra. “E falávamos de política, poesia, literatura. Hoje as pessoas já saem do cinema olhando para seus celulares e não querem saber de mais nada.”

Em seu grupo de amigos da época, ser politizado era condição quase obrigatória para o convívio. “Era bonito ser comunista, 90% dos artistas e intelectuais eram de esquerda”, afirma o músico, que durante muitos anos ganhou a vida como pianista, mas se aposentou precocemente devido a um problema de coluna. A boemia segue até hoje como marca de suas noites: “Fico lendo ou escrevendo até as três da manhã e acordo entre uma e duas da tarde”.

As conexões entre cinema e política, e arte em geral e política, não são casuais, na visão de Vianna. “Não podemos falar de cinema apenas como uma arte especializada”, diz. “Todas as bases do saber estão conectadas. Fechar-se na especialização reduz o homem. Fazer cinema requer um aprofundamento psicológico que falta nos dias de hoje.”

“Em certo sentido, não sei se já morri e sou apenas um fantasma”

Mesmo insatisfeito com a produção fílmica contemporânea, não abandonou o hábito das sessões. “Como não tem circo, eu vou ao cinema”, confabula. “Tomo um lanche no saguão e assisto a filmes ruins.”

Sua crítica afiada não poupa nem mesmo o aclamado “Aquarius”, dirigido por Kleber Mendonça Filho e estrelado por Sônia Braga: “Os diálogos são frágeis e muito alongados”, analisa. Nessas horas, diz, “você sente a cadeira”, o que, para ele, é o sinal mais claro de que um filme não é bom. O primeiro a que assistiu na vida, e de que gostou muito, foi “Como era verde o meu vale” (1941), de John Ford.

Neste mundo atual nem tão verdejante, em que a cultura, em sua opinião, tornou-se um simulacro, Rodolpho Vianna vê com ceticismo até a própria existência, imaginando se o senhor que caminha hoje pelas mesmas ruas que percorria nos anos 60 não passa de uma projeção imaginária. “Em certo sentido, não sei se já morri e sou apenas um fantasma”, elucubra.

De qualquer forma, sua persona estará materializada na plateia de muitas das exibições da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começou no dia 20 de outubro e vai até 2 de novembro. Vianna planeja assistir a ao menos um filme por dia.

Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibe 322 filmes até 2/11

A 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começou no dia 20 de outubro, conta em seu cardápio com 322 filmes, exibidos em 35 endereços da capital paulista, entre cinemas, espaços culturais e museus. Algumas projeções são gratuitas e ao ar livre.

A mostra homenageia o diretor italiano Marco Bellocchio, considerado um dos nomes principais do cinema político italiano dos anos 1960 e 1970, com sessões de 12 de seus trabalhos. Bellocchio realizou longas como “De punhos cerrados” (1965), “A China está próxima” (1967), “O processo do desejo” (1991), “A hora da religião” (2002) e “A bela que dorme” (2012).

Produções do mundo todo que se destacaram em importantes festivais internacionais, como os de Cannes, Sundance e Berlim, estão no roteiro do evento. Os novos trabalhos de diretores consagrados como Paul Verhoeven, Jim Jarmusch e os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne também podem ser conferidos.

Veja a programação completa e informações sobre compras de ingressos em http://40.mostra.org/br/home/.

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