Há um tipo de homenagem que virou hábito no mundo inteiro, principalmente nos campos de futebol. Morreu o pai do juiz, o tio do diretor do clube, a avó do gandula, lá vem o famoso minuto de silêncio. Em tempos de pandemia, antes de começarem os jogos, é assim que se presta solidariedade às famílias que perderam seus entes queridos.
Contudo, neste lado do Atlântico, especialmente em terras tupiniquins, o rito simbólico é uma das instituições menos prestigiadas. Segundo Nelson Rodrigues, um dos maiores jornalistas e dramaturgos do século passado, ‘no Maracanã, se vaia até minuto de silêncio’. Não chego a tanto, mas é fato que ninguém respeita os sessenta segundos sem dizer palavra. Alguns reclamam contra a perda de tempo, outros gritam que o protocolo deveria ser destinado a determinado jogador, que ‘já morreu, mas não sabe’; alguém aproveita a oportunidade para contar uma anedota, fazer uma gozação, praguejar, debochar, provocar, e por aí vai. Geralmente, com menos de 45 segundos, o árbitro desiste e dá início à partida.
Poucos sabem que a prática tão difundida nos estádios teve origem em Portugal, no ano da Graça de 1912 quando da morte do ilustre ministro das Relações Exteriores do Brasil, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco. Começou no parlamento em Lisboa, com dez minutos de duração. Depois, popularizou-se e caiu para cinco minutos e, agora, devido à pressa de viver dos tempos modernos, reduziu-se à fração mínima que, como se sabe, às vezes sequer é atingida.
O tributo ao nosso nobre diplomata tem razão na sua imediata disposição em reconhecer a República de Portugal, instalada nos primeiros dias de outubro de 1910. Com efeito, o Brasil foi o primeiro país do mundo a fazê-lo oficialmente, graças ao nosso bom barão que, por aqui, já fora monarquista, porém ‘virou casaca’ depois de 15 de novembro de 1889, data em que Deodoro da Fonseca foi levado a proclamar o novo regime. Veja bem: a expressão ‘virar casaca’ não fazia alusão a trocar de clube, como muitos pensam. Ela é mais antiga do que o futebol e nasceu na política. Refere-se à facilidade com que ‘vossas excelências’ mudam de pensamento, posição, partido, ideologia, etc.
Portugal despiu-se da monarquia, assumiu-se republicano e, como sempre fazem os países que promovem reviravoltas em seus sistemas de governo, trocou hino, bandeira, selos e o que mais pôde para soterrar o longo período de reis e rainhas. No Brasil, já havíamos passado por isso. Dom Pedro Segundo e a família imperial foram escorraçados, expulsos do país no meio da madrugada, como se houvessem cometido crimes hediondos. Todos os vestígios da realeza brasileira acabaram banidos, descartados, vendidos, destruídos, sepultados como cadáveres infames. E por falar em cadáveres, os restos mortais dos nossos monarcas, príncipes e princesas, levaram anos para que os republicanos empedernidos permitissem que descansassem em solo pátrio.
Todavia, a longa introdução é apenas para falar do nosso chanceler, o Paranhos Júnior. Filho de um estadista gigantesco que lhe cedeu o nome e a vocação para negociar e mediar bem, dentre outros predicados, tais como o amor e o respeito a esta nação tão maltratada.
Nasceu em 1845 quando o pai engatinhava na carreira pública como deputado, e ingressava na maçonaria com Irineu Evangelista de Souza, um dos maiores empreendedores da nação que entrou para a história como barão (visconde) de Mauá. Paranhos Sênior foi ministro várias vezes (inclusive dos negócios estrangeiros – o mesmo que ministro das relações exteriores), conselheiro e chefe de gabinete, função similar a primeiro-ministro. Ao fim de uma vida curta e profícua, morreu em 1880 de meningite, aos 61 anos.
Paranhos Júnior começou a carreira com o nome e a fama do pai. Natural. Estudou Direito na Faculdade de São Paulo, mas terminou o curso na instituição de Pernambuco. Foi advogado, diplomata, jornalista, geógrafo e historiador. Escreveu para as revistas ‘Popular’ e ‘Illustration’, na qual também desenhava; substituiu o famoso autor Joaquim Manoel de Macedo, criador do clássico ‘A Moreninha’, nas cadeiras de Corografia (especialidade da geografia que estuda especificamente um país ou uma de suas regiões) e História do Colégio Pedro II. Foi, também, promotor público em Nova Friburgo e deputado geral (o mesmo que deputado federal hoje em dia) por Mato Grosso. Fundou o jornal ‘A Nação’ em 1872 e, por volta de 1891, tornou-se colaborador assíduo do ‘Jornal do Brasil’.
Contudo, o nosso Júnior fez sucesso mesmo, absoluto e definitivo, na carreira diplomática. Começou como cônsul geral em Liverpool, Inglaterra. A seguir, como comissário na Exposição Internacional de São Petersburgo, na Rússia. Foi, ainda, superintendente dos serviços de imigração para o Brasil, em Paris, e ministro plenipotenciário em Berlim. Assumiu o Ministério do Exterior em 1902, permanecendo no cargo durante o mandato de quatro presidentes: Rodrigues Alves (1902-1906); Afonso Pena (1906-1909); Nilo Peçanha (1909-1910), e Hermes da Fonseca (1910-1914). Morreu no meio do governo do Marechal Hermes, também conhecido como marido da belíssima e talentosa Nair de Teffé, primeira mulher caricaturista do Brasil; violonista, escritora, aristocrata descolada, que promovia saraus concorridíssimos no Palácio do Catete, mesmíssimo lugar em que Getúlio Vargas se mataria anos mais tarde (1954). Por sinal, um prédio esplêndido, construído durante o reinado de D. Pedro Segundo pelo Barão de Nova Friburgo, atualmente aberto à visitação pública como Museu da República na cidade do Rio de Janeiro.
Por falar nos tempos do Imperador, o nosso ministro, também conhecido como Juca Paranhos, era monarquista convicto. Agraciado com o título de Barão do Rio Branco em 1888, assim assinava os documentos oficiais no período de chanceler da res publica. Apesar da preferência explícita, serviu à nação brasileira como pouquíssimos no decorrer da nossa história.
Sua maior contribuição foi a expansão das nossas fronteiras. Incorporou ao território brasileiro nada mais, nada menos do que 900 mil quilômetros quadrados, área maior que as da França, Inglaterra e Portugal reunidas. Uma de suas vitórias mais expressivas aconteceu no litígio contra a Argentina, que assegurou ao Brasil uma boa parte de Santa Catarina e Paraná. Cinco anos adiante, em 1900, obteve outra conquista de vulto, desta vez sobre a França, redefinindo a fronteira entre o Amapá e a Guiana no Rio Oiapoque (lembrem-se dos idos da escola primária, ‘do Oiapoque ao Chuí’). Finalmente, mas não por último, negociou a posse do Acre com a Bolívia no tratado de Petrópolis, e consolidou a integração no tratado Velarde-Rio Branco, com o Peru, em 1909. Conta-se que em troca da nossa soberania na região, deu aos bolivianos alguns dólares, a promessa de construção de uma estrada de ferro, a Madeira-Mamoré – jamais concluída – e um cavalo puro-sangue.
Os grandes feitos de Juca Paranhos não se esgotam nesses três episódios formidáveis. Foram muito além, com conselhos sábios, mediações célebres e estratégias brilhantes para fazer da política externa brasileira uma das mais notáveis e respeitadas da época, haja vista o imediato reconhecimento à legitimidade da República Portuguesa, atitude que trouxe ao Brasil uma justificada liderança como país conciliador, granjeando o reconhecimento das grandes potências europeias.
O segundo Paranhos era também muito criativo. Como curiosidade, foi sua a ideia de convidar o engenheiro Augusto Ferreira Ramos para projetar e construir um teleférico que ligasse o Morro da Urca ao Pão de Açúcar. O cartão-postal mundialmente conhecido como ‘Bondinho do Pão de Açúcar’ nasceu assim, de um insight seu, por volta de 1908.
Novamente contrariando Nelson Rodrigues, segundo o qual ‘toda unanimidade é burra’, acredito piamente que a aprovação geral ao trabalho de Juca Paranhos é a antítese do aforismo predileto do memorável torcedor do Fluminense. Juca era preferência nacional para a Presidência da República em 1914. O povo não ignorava seu perfil de mulherengo conquistador possessivo, vaidoso, centralizador, sedento de glória, amante da boa mesa e das boas noites, porém, não havia quem o reprovasse. Juca tornara-se a maior estrela da República, que ainda cumpria seus primeiros anos, assumindo o papel de ídolo graças ao admirável espírito patriótico, algo tão escasso naquela altura, quanto na atualidade.
O escritório que ocupava no Palácio do Itamaraty, sede do Ministério (outro imóvel do Segundo Império, construído entre 1851 e 1855 por Francisco José da Rocha Leão, conde de Itamaraty – ‘córrego das pequenas pedras’ em tupi-guarani) era de uma bagunça espantosa. Somente Juca sabia onde estavam as coisas e os documentos; ninguém, a não ser ele, encontrava o escaninho de um processo, de um parecer, de um mapa, ou apontava a prateleira exata onde dormitava um acordo, um tratado. Era o senhor e o guardião do diagrama torto, mas funcional, do epicentro da diplomacia verde e amarela.
Na crista da onda, prestes a ver sedimentada uma das trajetórias mais brilhantes da política nacional, o nosso Júnior sentiu a mão do destino desafiar suas chances de êxito total. Adoeceu. Pediu demissão ao Marechal Hermes; queria ir embora, tratar-se, recolher-se ao anonimato. Nesse momento, fumava cerca de duzentos cigarros por dia, acendendo um novo no toco do outro. Seus rins falhavam. Seus pulmões falhavam. Seu coração falhava. O marido de Nair de Teffé não aceitou a demissão e José Maria da Silva Paranhos Júnior se despediu da vida em 12 de fevereiro de 1912, às vésperas do Carnaval. Suas exéquias comoveram a cidade, o país, o mundo. Pela primeira vez, a festa de Momo foi adiada. O nosso povo chorou em lágrimas e dor o que seria samba e alegria. Então, o governo português inaugurou a reverência do silêncio, que começou em dez minutos, caiu para cinco e, agora, no ano de 2021, mal chega aos 60 segundos.
Em seu papel de carta timbrado, o Barão mandou imprimir uma frase em latim: “ubique patriae memor”, que significa “em todo lugar lembrar-se da pátria”. Neste século de raríssimos estadistas; de ódios múltiplos e quase nenhum amor à nação; do exercício contumaz da agressão gratuita, da desavença, da ausência de fair play; no âmbito do medo, da mentira deslavada, do absurdo alugado; quando amigos se estranham, se digladiam por questões banais, e políticos colocam seus próprios interesses à frente das necessidades da população, está mais do que na hora de lembrar-se do Barão do Rio Branco, epítome da brasilidade. Vamos retomar seu caminho. Vamos sepultar aqui e agora o passado recente que tanto nos envergonha. Sem minuto de silêncio, por favor.