O sono nosso de toda noite está cada vez mais raro. Não sei se com você acontece o mesmo, mas comigo, e com muitos dos meus amigos, dormir se assemelha a uma façanha de grande magnitude, algo somente acessível a um deus grego. Hipnos, por exemplo.
Pregar os olhos, descansar as vistas, puxar um ronco, tirar uma pestana já não é tão simples e tranquilo como foi antigamente. De uns anos para cá, nós estamos dormindo menos e mal. Ainda assim, à custa de melatonina e outros indutores. E não é por causa das restrições e ameaças da pandemia. O fenômeno vem se repetindo e se agravando desde antes da invasão chinesa.
Para mim, dormir é semelhante a morrer. Portanto, é o segundo ato mais íntimo que se pode consumar. Mais íntimo do que o sexo. Isso, porque morrer ou dormir nos priva da consciência e arremessa nossas almas ou espíritos - como queiram - para um ponto qualquer no meio do inescrutável, onde tudo é possível e não exercemos controle sobre nada. A diferença fundamental entre morrer e dormir é a ressurreição no segundo caso. Todos os dias, geralmente pela manhã, descobrimos que voltamos do hipogeu, o subterrâneo escuro e misterioso, bem no instante de enfrentar os desafios do mundo material. Só que essas ausências estão se tornando mais curtas e, por conseguinte, menos revigorantes.
O sono é fundamental. Reduz o estresse, melhora o humor, controla o apetite, lubrifica a memória, estimula o raciocínio, rejuvenesce a pele, ajuda o sistema imunológico. Todos os seres vivos precisam morrer um pouco, ou melhor, dormir um bocadinho de quando em quando. Os peixes dormem. As aves dormem, às vezes durante o voo. Os répteis dormem - alguns sem fechar os olhos. As plantas dormem do seu jeito, mas dormem. Os golfinhos têm o chamado sono unihemisférico, isto é, adormecem um lado do cérebro de cada vez, mantendo o outro vigilante. Até os bandidos mais ativos e os políticos mais perigosos precisam de uma soneca. Dormir é essencial como amar.
Na época dos meus velhos, pessoas com a minha idade atual (72 anos) dormitavam dia e noite. Sequer se davam o trabalho de trocar de roupa. Passavam semanas, metidos em pijamas listrados e peignoirs compridos. Cadeiras de balanço não podiam faltar no mobiliário doméstico. Em cada canto da casa havia uma. Lembro-me bem de ver a minha avó Rosalina em seus seguidos cochilos na sala de estar, enquanto a turma mais nova andava de lá para cá na ponta dos pés. Tudo que se ouvia eram seus resfôlegos e o ranger da cadeira que ela movimentava sem parar, com o impulso ritmado das pernas cobertas por meias de malha grossa. Não posso disfarçar o sorriso ao pensar que se parecia com uma passarinha roliça dormindo em pleno voo.
A cena não era incomum em qualquer lugar que se fosse. Ao entrar na residência dos meus tios, ainda na porta, enxergava no meio do extenso corredor o nosso querido ‘adido afetivo’, coronel Paixão, roncando a sono solto, largado na cadeira de balanço de assento e encosto de palhinha. Fizesse sol ou lua, era parte fixa da decoração.
A dormência coletiva da terceira idade no passado pode ser explicada facilmente quando examinamos alguns fatores: os hábitos e costumes, as normas sociais, os preconceitos existentes, a evolução da medicina, a expectativa de vida e o crescimento das taxas de natalidade.
Em meados dos anos 1940, o mundo havia recém-saído de dois conflitos radicais (I e II Guerras), separados por uma pandemia devastadora (Gripe Espanhola). Por conta dessas catástrofes, milhões morreram e a procriação tornou-se uma consequência imperativa. Entre 1946 e 1964, o fenômeno recebeu o nome de Babies Boomers, uma geração produzida para compensar a tábua demográfica, e que acabou por modificar os padrões comportamentais vigentes. Presumo que o ‘Etarismo’ tenha ganhado força nesse momento.
Por outro lado, os avanços das ciências biológicas e da tecnologia também surtiram seus efeitos, prolongando a vida. Segundo os relatórios da ONU, quem nasceu em 1960 – quando as Nações Unidas começaram a compilar dados globais – poderia esperar permanecer entre nós por 52,5 anos. Em 2018, a expectativa subiu para 72 anos. No Brasil, particularmente, o salto foi ainda maior: passou de 48 para 75,5 anos. Olhando para ‘trasmente, morre-se muito menos agora’, como diria Odorico Paraguaçu, prefeito da imaginária Sucupira, personagem principal da novela ‘O Bem-Amado’, fruto saboroso da mente de Dias Gomes (51 anos), interpretado deliciosamente por Paulo Gracindo (62 anos). Na visão do alcaide pilantra, a construção de um cemitério seria um grande negócio, pois as pessoas morriam como moscas. Diga-se de passagem, que ninguém bateu as botas durante a trama, e o próprio prefeito acabou inaugurando o campo santo, ao ser assassinado pelo pistoleiro Zeca Diabo, representado pelo magnífico Lima Duarte (43 anos), Aliás, o ator continua ativo aos 92.
No cotidiano dos meus antepassados, costumava-se repetir à exaustão que o futuro pertencia exclusivamente aos jovens, tidos como a única saída para a evolução, receita garantida de sucesso da raça humana. Quem teimava em resistir era alijado da roda produtiva pelo preconceito. A aposentadoria se transformava em um velório que se estendia por quinze, vinte anos, condenando todos os homens e mulheres à desgraça, ao ostracismo, ao sono diuturno.
Como sempre, a história foi modificando o pensamento e a atitude. Hoje, principiamos a entender por que uma moeda tem dois lados não excludentes: a experiência nem sempre se dissocia da criatividade, e esta nem sempre elimina a sabedoria. Por isso, devemos coexistir jovens e velhos, idosos e moços. Melhor ainda: podemos somar e multiplicar o produto dos esforços individuais como partes integrantes da mesma engrenagem. Somos parceiros, nascemos iguais, (perseguimos a mesma utopia, a felicidade perene), interdependentes até o fim. Ademais, a juventude se recusa a ir embora enquanto houver um sonho aceso. ‘O sonho mantém a juventude’ - disse alguém de quem não lembro o nome, mas respeito a opinião.
Recentemente, recebi um convite para o show de um amigo em Belo Horizonte (MG). Talvez, você o conheça. Chama-se Erasmo Carlos. Ele tem 80 anos e está na estrada novamente. Como também Paul McCartney, o eterno Beatle, que começa sua turnê pelos Estados Unidos (Seattle) em maio. Aqui, bem perto de nós, há o modelo mais extraordinário da força criativa e dinâmica da ‘turma dos cascudos’. Nilton Molina, fundador e presidente do Instituto de Longevidade MAG, presidente do Conselho de Administração da MAG Seguros e Previdência S.A., e a mais respeitada autoridade no ramo de seguros de pessoas e previdência privada no Brasil, acaba de lançar sua biografia, ‘O vendedor de futuros’, livro escrito pelo ótimo jornalista Luís Costa Pinto (54 anos). Alcançando os 86 anos, Molina percorre o país com palestras e apresentações memoráveis. Tudo isso me leva a crer que o ‘O amanhã nunca morre’ (Tomorrow Never Dies), como disse o agente 007 de Pierce Brosnan, ator que chega aos 69 anos, vigorosamente produtivo.
Muito bem. Mas, o que tudo isso tem a ver com a insônia e o famoso segundo sono? Acho que está na hora de explicar para o paciente leitor que, apesar dos bocejos, chegou a este ponto da narrativa.
Quem tiver um tantinho a mais de bagagem, deve ter ouvido falar que ‘fulano está no segundo sono’, ou ‘a sono solto’. Essas expressões nos remetem ao século quatorze e nos acompanharam até o começo dos anos 1900. Nesse largo período em que o sol determinava a parte mais profícua do dia, a iluminação noturna advinha das velas de cera, das lamparinas de óleo de baleia, achas de lenha nas lareiras e fornos, ou lampiões a gás (já na metade do século dezenove). Muitos tinham em casa um galinheiro, que provia ovos e carne; uma horta com legumes e verduras; um pomar com algumas espécies frutíferas, e cabras que os abasteciam de leite. Os mais afortunados criavam gado bovino, plantavam canaviais, milharais e com o excedente abasteciam o comércio. Em síntese, o sustento dependia diretamente de cada família, portanto, dos esforços conjuntos de seus integrantes, independentemente da faixa etária.
Acredite ou não, dormia-se duas vezes por noite. O primeiro sono, mais breve, começava sob o manto inicial da escuridão e se estendia até às 22 horas, dependendo da região. Então, as pessoas acordavam e retomavam os seus afazeres: visitavam os vizinhos, cozinhavam, cuidavam das casas, consertavam roupas. Por volta das duas horas da madrugada, apagavam de novo – o segundo sono, mais profundo, que se estendia ao raiar do dia.
À medida que a revolução industrial passou a ditar as relações trabalhistas; que os governos elaboraram os primeiros programas sociais; que as cidades passaram a exercer grande fascínio, provocando o êxodo dos campesinos; que as guerras, conflitos, sedições e revoltas ocorreram; que as pragas climáticas e biológicas ceifaram milhões de vidas, o sono passou a ser o refúgio para muitos que se viam sem condições de participar da nova realidade pelo excesso de tempo consumido.
Sob as regras do Estado ou sob a proteção caridosa de parentes e instituições, foram induzidos a cederem seus lugares na cadeia produtiva aos meninos e meninas que se apresentavam ávidos por espaço e, por fim, se adaptaram docilmente à ideia sem sonhos das magras aposentadorias, pensões e misericórdia.
Pois bem, hoje estamos de volta ao jogo. Não para reivindicar o lugar de sábio secular, tão comum nas civilizações orientais, nem para cobrar o tempo perdido (como disse Renato Russo). Voltamos para compartilhar, somar, entender, reaprender, evoluir. Esta é a verdade ocidental. Somos parceiros do futuro e, se não enxergamos através dos muros, sabemos como contorná-los. Podemos dar algumas dicas, pistas para alcançar o outro lado, o lado da glória, da vitória. E se dormimos pouco, se temos insônia crônica, é porque precisamos estar de olhos abertos para o amanhã. Sim, ele virá. Para mim. Para você. Para todos nós. Juntos!