Não poderia ser diferente: a irreverência dá o tom às narrativas de “Rita Lee: uma autobiografia” (Editora Globo, 2016, 294 págs.). O que mais surpreende no livro e o torna leitura recomendada, não só para quem gosta da artista ou do rock brasileiro que ela personificou, é a multiplicidade de temas que extrapolam a pauta musical, muitos deles densos, porém suavizados por uma linguagem descontraída – a despeito de eventuais mordacidades.
Rita conta tudo. Começa por inserir o leitor no seio de uma família paulistana de situação financeira estável que habitava um casarão no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Foi no porão da casa que a roqueira engendrou os primeiros passos no show biz, em esquetes com as irmãs para plateias imaginárias, ainda quando eram crianças.
Data dessa época uma das passagens mais angustiantes da biografia – o relato de quando foi violentada com uma chave de fenda por um técnico que havia sido chamado para consertar uma máquina de costura. A autora descreve o episódio com certo distanciamento – o trauma e a pouca idade apagaram a memória do fato – ou ainda, como se fosse cabível ou possível, com nuances de humor, caso do título do capítulo, “Desvirginando”.
Em geral os acontecimentos seguem uma cronologia linear, em uma costura competente de histórias pessoais e profissionais bem contextualizadas pelos cenários sociopolítico-econômicos em que transcorreram. Essas intersecções marcam, por exemplo, uma revista policial em seu apartamento, que culminou em prisão por porte de drogas, em 1976. No Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), em tempos de repressão e ditadura, ouviu ameaças do tipo “Seu colega Gilberto Gil foi preso em Santa Catarina e acabou se dando bem. Aqui é São Paulo e você não vai se dar bem, entendeu?”
“Envelhecer com bom humor e uma boa dose de sarcasmo não é para maricas”
Bem incisivas são as explanações sobre rupturas importantes em sua carreira, como a saída do grupo Os Mutantes: “...aconteceu bem nos moldes de ‘o noivo é o último a saber’, no caso, a noiva”, descreve. Seu colega de banda, Arnaldo Baptista, a expulsou com o argumento de que não tinha “calibre como instrumentista”. “Uma escarrada na cara seria menos humilhante”, escreve ela, em relação ao ocorrido.
Os filhos e o casamento com o músico Roberto de Carvalho ocupam muitas páginas do livro, bem como o envolvimento com drogas – idem para as internações. Rita não alivia quando fala sobre seus cambaleios pelos becos menos iluminados do rock´n´roll. Em um deles, já nos anos 1990, alugou um apartamento em Pinheiros para passar dias e noites bebendo. Foi socorrida pelo filho Beto: “Trocamos de papel, o filho dava banho na mãe, a levava desmaiada pra cama, esvaziava ‘mamadeiras’ que encontrava pelos cantos”.
Há 11 anos “limpa”, sobrevivente de um diagnóstico errôneo de Doença de Parkinson, Rita Lee Jones Carvalho, que fará 69 anos em 31 de dezembro, decidiu abandonar os palcos em 2013. “Aquela cena manjada de celebridade vetusta solitária e saudosa de sua juventude não era minha praia, menos ainda tentar exibir boa forma em público com plásticas e botoxes para me dizer viva”, afirma.
“Envelhecer com bom humor e uma boa dose de sarcasmo não é para maricas”, fraseia, definindo não só seu amadurecimento como também toda a vida de estripulias da “ovelha negra da família”.