"Você se parece com seu pai, mas tem os olhos da sua mãe". "Acho que seu senso de humor peculiar veio de seu avô". Falamos muito destas características físicas ou comportamentais que são passadas de geração em geração. Seja altura, temperamento, estrutura corporal, cor dos olhos, cabelos, entre tantas outras.
No entanto, quando se trata de questões mais sérias, tais como doenças, tendemos a assumir que os hábitos ou estilo de vida são sua causa principal – se não a única. E embora muitas vezes seja este realmente o caso, em outras situações o fator genético, ou seja, a transmissão dos pais para os filhos, é determinante.
A hereditariedade interfere na predisposição ou existência de doenças, como em certas patologias que acometem o coração. A genética pode influenciar o risco de eventos cardíacos de muitas maneiras. Isso porque os genes controlam diversos aspectos do sistema cardiovascular, desde o tamanho e espessura dos vasos sanguíneos até a forma como as células do coração se comunicam. Uma variação ou mutação em um único gene pode afetar a probabilidade de desenvolvimento de diferentes doenças.
Por isso, ter conhecimento do histórico de saúde da sua família, assim como das enfermidades e fatores de risco trazidos pela genética, pode ajudar a prevenir, tratar e minimizar problemas e complicações futuras no sistema cardiovascular.
Como avaliar o risco?
Quem tem pais, avós, tios ou irmãos que passaram por algum problema cardíaco tem mais risco, por exemplo, de desenvolver a doença arterial coronariana (DAC), sofrer um infarto do miocárdio, um acidente vascular cerebral (AVC) ou apresentar anomalias no órgão que muitas vezes só são descobertas após o corpo dar algum sinal.
No caso do coração, há ainda um grupo de patologias que podem levar a problemas cardiovasculares, como a hipertensão arterial sistêmica, o diabetes e o colesterol elevado. Saber que familiares apresentam tais disfunções e não controlar adequadamente a pressão arterial ou não se preocupar em manter uma dieta com baixo teor de açúcar, sódio e gorduras saturadas pode predispor o indivíduo ao risco da DAC, principalmente quando há outras questões que aumentam as chances, como sedentarismo, estresse, tabagismo e obesidade.
Além disso, algumas doenças são geneticamente transmitidas dentro de uma família, mesmo que não exista nenhum fator de risco associado ou a existência de hábitos ruins e falta de cuidado com a saúde, o corpo e a alimentação. Aqui vamos falar de três das mais comuns.
1. Cardiomiopatia hipertrófica familiar
A cardiomiopatia hipertrófica familiar é uma condição hereditária muito comum, que pode afetar pessoas em qualquer idade. A doença se caracteriza pelo espessamento de parte ou de todo o músculo cardíaco. Em situações extremas chega até a causar a morte súbita.
O espessamento ocorre frequentemente na parede que separa os ventrículos esquerdo e direito (as duas câmaras inferiores do coração), o que dificulta ou impede que o sangue circule adequadamente dentro órgão. Assim, passa a exigir que o coração trabalhe com mais intensidade do que deveria.
Este espessamento também pode levar à redução da cavidade do ventrículo esquerdo, repercutindo no aumento da pressão sanguínea dentro desta câmara e nos pulmões. Quando isto acontece, geralmente, o indivíduo sente falta de ar. Outra consequência é a alteração no ritmo cardíaco, com o surgimento de arritmias leves ou graves.
Os sintomas da cardiomiopatia hipertrófica familiar podem variar de pessoa para pessoa ou até mesmo ser assintomática, o que torna a condição perigosa, uma vez que muitos acabam não atribuindo os sinais ao histórico familiar da doença e demoram a procurar ajuda médica. A recomendação é que, ao constatar algum caso na família, seja realizado o rastreamento da doença em todos os descendentes diretos.
O diagnóstico e o início do tratamento o mais breve possível podem evitar que a doença progrida ou acarrete em complicações graves. Uma vez detectada a cardiomiopatia, é possível fazer a prevenção com medicamentos ou apenas com mudanças e monitoramento de hábitos e estilo de vida. Em alguns pacientes pode ser necessário a realização de procedimentos cirúrgicos e, em quadros mais graves, até um transplante de coração.
2. Cardiomiopatia familiar dilatada
Enquanto a cardiomiopatia hipertrófica faz com que o músculo cardíaco fique mais grosso, a cardiomiopatia dilatada provoca o oposto, ou seja, o músculo cardíaco se torna mais fino e enfraquecido.
Em pessoas que sofrem da anomalia, conforme o músculo cardíaco distende, a câmara afetada aumenta, tornando a contração do músculo menos eficiente. Com o tempo isso pode levar à insuficiência cardíaca – estado em que o coração não consegue bombear o sangue para suprir as necessidades do corpo. Vale reforçar que ambos os lados do coração podem ser afetados.
Entre os principais sintomas da doença, estão: irregularidade dos batimentos cardíacos, fadiga, falta de ar, desmaio e inchaço do abdômen e das pernas. Algumas pessoas não apresentam nenhum sintoma, o que mais uma vez pode se tornar um grande problema. Isso porque se a cardiomiopatia dilatada familiar não for diagnosticada e tratada em tempo pode chegar a quadros irreversíveis e até levar a morte.
Assim como na cardiomiopatia hipertrófica, o tratamento da cardiomiopatia dilatada tem como foco controlar os sintomas, prevenir o agravamento e proteger o paciente de complicações futuras. Por isso, ao ter conhecimento de um ou mais familiares com cardiomiopatia dilatada sem uma causa justificável ou ainda um parente de primeiro grau que morreu inexplicavelmente e de repente antes dos 35 anos, é importante se submeter a uma triagem para avaliar os riscos da patologia.
3. Hipercolesterolemia familiar
A Hipercolesterolemia familiar (ou HF) é uma condição grave, responsável por 5 a 10% dos casos de eventos cardiovasculares em pessoas abaixo de 50 anos. O problema é que grande parte dos portadores de HF não sabem disso. Para se ter ideia, estima-se que menos de 10% dos indivíduos com a patologia têm o diagnóstico conhecido e menos de 25% recebem tratamento.
A HF é uma doença genética do metabolismo das lipoproteínas (gorduras). Seus portadores apresentam níveis muito elevados do colesterol de baixa densidade, o LDL-c — tipo de colesterol que contribui para a formação de placas de gordura nas artérias, popularmente conhecido como colesterol ruim.
Para se ter ideia, os portadores da HF têm níveis até quatro vezes maiores do que o apresentado por pessoas sem a disfunção genética. O ponto de partida para se considerar a possibilidade diagnóstica de Hipercolesterolemia familiar é a concentração de LDL-c maior que 190 mg/dl (em adultos). Além dos níveis de LDL-c, há a presença de sinais clínicos característicos, como xantomas tendíneos (inflamação de tendões), xantelasmas (depósitos de gordura na pele) e arco corneano (depósito de gordura ao redor da íris).
A disfunção que origina a HF é de transmissão autossômica dominante, o que significa que a metade dos descendentes em primeiro grau de um indivíduo afetado vão ser portadores do problema e irão apresentar níveis elevados de LDL-c desde o nascimento.
O tratamento envolve medicamento, bons hábitos alimentares (dieta com baixo teor de gorduras) e a prática de exercícios físicos. Sem os cuidados necessários, com o passar dos anos, a gordura acumulada pode ficar depositada na parede das artérias, causando bloqueios capazes de interromper parcial ou completamente o fluxo sanguíneo, o que acarreta em complicações cardíacas. Pessoas acometidas HF têm mais risco de sofrer infartos e desenvolver outras doenças do coração, como a doença arterial coronariana.
Outros problemas no coração hereditários
Temos ainda na cardiologia outras anomalias que podem se replicar de geração em geração, a exemplo das miocardiopatias, distúrbios cardiovasculares que afetam o músculo do coração impedindo o bombeamento do sangue para o corpo. O grande problema aqui é o risco de morte súbita. Em alguns casos elas são identificadas por até três gerações seguidas e podem acometer inclusive irmãos - ou seja, um indivíduo com essa patologia pode transmitir a anomalia para todos os seus filhos.
Há ainda as doenças degenerativas da aorta (maior e mais importante artéria do sistema circulatório), sendo a mais conhecida delas a Síndrome de Marfan. Outro grupo de doenças hereditárias que afetam o sistema cardiovascular são aquelas responsáveis por arritmias cardíacas, também com risco de morte súbita, como a displasia arritmogênica do ventrículo direito, a Síndrome do QT longo, Síndrome de Brugada ou ainda as doenças degenerativas do sistema de condução do estímulo elétrico cardíaco.
Então se meu pai, mãe ou um parente próximo teve um problema no coração, eu também vou ter?
Não obrigatoriamente, mas a probabilidade é maior. No entanto, a história da sua família não vai necessariamente se tornar a sua. Antecedentes cardiológicos devem ser tratados como um sinal de alerta. A genética tem sua influencia, mas não é a única responsável pela saúde do coração.
Cuidar e prevenir fatores de risco, manter check-ups periódicos e buscar avaliação médica sempre que houver dúvidas ou indícios de uma predisposição são essenciais. Descobrir previamente as chances de uma possível complicação cardíaca pode minimizar ou até evitar o problema, antes que ele cause sintomas ou se torne perigoso.
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