Conquistar a carreira dos sonhos está nos planos de todos. Mas com a filósofa Cordélia Maria Ramos, 59 anos, foi um pouquinho inusitado: ela conta que se encontrou profissionalmente quando já tinha se aposentado. "Sempre me achava muito solidária", diz ela, que teve vários empregos, o último deles com legendagem.
"Ao ver profissionais de mais idade trabalhando" na Livraria da Vila, em 2011, decidiu seguir o mesmo caminho: "Levei três meses para enviar meu currículo", confessa. “Mas, quando enviei, fui contratada em duas semanas”. Avó de dois meninos, confessa: “Estar no mercado de trabalho é um resgate muito grande da juventude”.
Leia os principais trechos da entrevista:
Qual sua formação e carreira anterior à Livraria da Vila?
Sou filósofa, mas nunca dei aula. Optei por morar na Inglaterra para estudar literatura inglesa, minha verdadeira paixão. Ao voltar para o Brasil, tive vários empregos, mas nunca me encontrava porque sempre me achava muito solitária. Uma das áreas que mais gostei foi a de legendagem, mas acabei deixando também porque queria algo mais dinâmico, com mais contato com o público.
Como e quando foi contratada pela Livraria da Vila?
Sempre gostei muito de livros. Em 2011, entrei na inauguração da Livraria da Vila do Shopping Higienópolis [zona central de São Paulo] e reparei que havia alguns profissionais de mais idade trabalhando. Achei interessante e perguntei a um vendedor como funcionava para me candidatar a uma vaga lá. Levei três meses para enviar meu currículo, mas, quando enviei, fui contratada em duas semanas.
Como é o dia a dia do seu trabalho?
Entro geralmente às 9h. Chego e já preparo a loja para os clientes, ligo os computadores e coloco as revistas e jornais nos revisteiros. Durante o dia, atendo os clientes, arrumo os livros que ficam fora do lugar e crio mesas para venda de livros especiais, como os da FLIP - Festa Literária Internacional de Paraty.
Como você faz para estar atualizada e poder indicar os melhores livros?
Pode parecer exagero, mas é verdade [risos]: toda manhã acordo meia hora mais cedo para ler um livro. Além disso, na livraria, também leio três jornais de grande circulação. Quando não consigo lê-los inteiros, priorizo os cadernos de cultura. Assim, fico sabendo dos lançamentos literários e cinematográficos que pautam grande parte das vendas aqui na livraria. É batata! Quando sai uma matéria no jornal, o cliente pergunta da publicação na loja. Também fico sabendo das obras pelos informativos que recebemos das editoras.
Falando em leitura, qual seu livro e seu autor favoritos?
Nossa! São tantos. Passaria o dia fazendo uma lista [pausa para pensar]. Vou optar pelo livro "Rezar na Era da Técnica", de Gonçalo Tavares, porque repeti a leitura diversas vezes. E, de autora, escolho a Jane Austin. Confesso que me sinto angustiada porque deixo várias outras preferências para trás. Posso listar outros [risos]?
“Descobri competências que eu nem sabia que tinha”
Como é a convivência com os profissionais da livraria, principalmente os mais jovens?
Gosto muito de treinar os profissionais mais jovens. Há uma troca muito grande. Eles passam conhecimento para mim, e eu, para eles. Todo esse conhecimento a gente vai usando no trabalho. Tudo é experiência de vida.
“Ser livreiro exige dedicação e doação”, diz a filósofa Cordélia Maria Ramos, que, aos 59 anos, é avó de dois meninos. Crédito: Na Lata.
Por que decidiu voltar a trabalhar?
Consegui a aposentadoria aos 54 anos, mas decidi voltar a trabalhar para me sentir mais ativa e também para complementar a renda. Enquanto eu puder trabalhar e ter contato com pessoas, continuarei. Estar no mercado de trabalho e é ter um resgate da juventude muito grande! Já fiz até amizade com clientes. Há pessoas que conheço tanto o gosto que, quando elas chegam, já indico livros que acredito que elas vão gostar. É muito gratificante!
Olhando para sua carreira hoje, o que sente?
Eu acho minha profissão muito bonita. Tenho muito orgulho dela. E minha família também. Descobri competências que eu nem sabia que tinha, como a de vendas. É muito rico! Ser livreiro exige dedicação e doação. A carreira se encaixou ao meu perfil perfeitamente!
Seus colegas que estão na sua mesma faixa etária também estão trabalhando?
Tenho amigos que estão trabalhando, sim, mas não no mesmo ritmo que eu, com jornada fixa, horário de entrada e saída etc. Estão com trabalhos esporádicos para complementarem a renda e não ficarem parados. Creio que seja a mais ativa do grupo.
“Ao trabalhar, o aposentado volta a ficar ativo, evita ficar deprimido”
O que acha das regras para aposentadoria no Brasil?
O que recebemos de aposentadoria não tem valor justo e com o tempo fica menos justo ainda, visto que o custo de vida no país está cada vez mais alto e nosso benefício não acompanha esse aumento. No entanto, acredito que, antigamente, o mercado de trabalho já teria fechado as portas para a gente. Na minha opinião, quem tiver saúde e disposição, mesmo com idade avançada, deveria encontrar emprego disponível e condições para continuar contribuindo com a Previdência. O que não acontece no Brasil. Temos de aposentar porque também não temos mais oportunidade de emprego.
O que diria para profissionais aposentados que desejam voltar a trabalhar?
Dou todo apoio para que a pessoa volte a trabalhar. Não só pelo dinheiro, mas principalmente pelo convívio social. Ao trabalhar, o aposentado volta a ficar ativo, evita ficar deprimido, tem melhor qualidade de vida e, muitas vezes, até entardece o adoecimento. Todos ganham: a empresa e o profissional!