O que você sabe a respeito dos seus pais antes de eles serem seus pais? Não estranhe a pergunta: muita gente se esquece de que seus genitores existem além dessa função. Esse é um dos aprendizados que o poeta, cronista e jornalista Fabrício Carpinejar, de 45 anos, tem colhido a partir da reaproximação do pai e da mãe, ambos com 79 anos – um movimento que estabeleceu como projeto de vida.
E que chegou à sua própria literatura. Em maio, ele lançou “Cuide dos seus Pais Antes que Seja Tarde” (Bertrand Brasil, 112 págs.), livro que define como “um pedido de desculpas” pelo período em que considera ter sido um mau filho – clique aqui e leia a apresentação da obra. “Eu deixava acumularem chamadas não atendidas deles”, exemplifica, em momento de expiação. “Prometia encontrá-los no final de semana e desmarcava”, lembra. “Sempre deixamos os pais para depois, achamos que eles vão entender.”
Carpinejar e seu livro “Cuide dos seus Pais Antes que Seja Tarde”, que define como “um pedido de desculpas” pelo período em que considera ter sido um mau filho; Crédito: Divulgação
Esse adiamento faz parte de um modo de enxergar os pais como “eternos provedores”, diz Carpinejar. “Antes, eu queria apenas ser alimentado e protegido”, conta. “Eu só os procurava quando tinha alguma necessidade. Não imaginava que eles também têm necessidades, não me preocupava com o que eles pensavam. A gente em geral não dá aos pais a possibilidade de eles dizerem o que os está incomodando, e eles mesmos, quando têm algum problema, não procuram os filhos com medo de incomodá-los. Muitas vezes os filhos são os últimos a saber que os pais estão doentes, por exemplo.”
A partir do reconhecimento das próprias lacunas na relação com seus progenitores, ele se propôs o exercício de uma mudança de olhar. “É difícil essa transformação”, afirma. “É deixar de vê-los como indestrutíveis e imortais e passar a enxergar suas fragilidades.”
O escritor mora em Belo Horizonte e é, ele mesmo, pai de um casal – Mariana, 24, e Vicente, 16. Como parte do planejamento de conviver mais com seus pais, precisou rearranjar a rotina em níveis até geográficos.
Às sextas, está com o pai, o também escritor Carlos Nejar, no Rio de Janeiro, onde ele vive com a parceira do segundo casamento. Às segundas, vai para Porto Alegre, cidade em que mora sua mãe, Maria Carpi. “A atenção para com os dois tem que ser igual”, diz Carpinejar, que nasceu em Caxias do Sul (RS).
Nesse processo, uma ação tornou-se fundamental: perguntar. “Sempre que um filho tiver que preencher um prontuário de hospital para os pais, concluirá que não os conhece verdadeiramente”, filosofa. “Eles têm alergias? Qual o tipo de sangue deles? Retiraram a adenoide? A gente não sabe nada disso. Uma relação com um pai, que é uma das pessoas mais importantes da nossa vida, pode, então, ser absolutamente impessoal.”
Carpinejar também define o livro “Cuide dos seus Pais”, escrito em tom confessional, como um “manifesto de ternura com a velhice”; Crédito: Divulgação
Ternura com a velhice
Com a sorte de não precisar recorrer a tais investigações em casos de doença, já que seus pais estão bem saudáveis, Carpinejar começou a lhes fazer “perguntas aleatórias” no cotidiano. “Chegam a ser mais de 300 por dia de convívio”, contabiliza. “São perguntas pontuais, do tipo ‘Quem te ensinou a se barbear? Você se barbeava com lâmina? Tinha medo de se cortar?’ São questões decisivas para a formação de uma alma”, pondera. “E eles estão dispostos a falar. O que mais querem é alguém que os ouça.”
O poeta também define o livro “Cuide dos seus Pais”, escrito em tom confessional, como um “manifesto de ternura com a velhice”. “Eu não glorifico a velhice, mas ela exige de nós uma mudança comportamental séria. A longevidade aumentou, e os pais que antes viviam até os 60 anos hoje vivem até os 80 ou 90. Vejo isso como uma grande oportunidade de os filhos devolverem todo o cuidado que receberam.”
Para ele, “a gente não tem medo de morrer, tem medo de morrer sozinho, da solidão. E não há nada mais pateticamente triste do que um pai que tem, digamos, seis filhos e está morrendo sozinho em um leito de hospital, sem ter alguém que lhe segure a mão”.
Diante dessas reflexões, Carpinejar percebeu que precisava atingir um equilíbrio na relação com os que o trouxeram ao mundo. “Um meio-termo entre o não cuidar e o tratar como inútil”, define.
“É preciso saber ouvir. Quando estou com minha mãe, tenho de estar em outra dimensão, em outra velocidade, na velocidade dela. Em geral há uma prepotência do filho em já achar que sabe o que os pais vão dizer, a gente não os escuta, nós os interrompemos a toda hora. A relação com os pais muitas vezes é uma sucessão de diálogos interrompidos.”
Esse atravancamento, em sua opinião, começa já bem cedo em nossas vidas. “Desde a adolescência, o filho foge dos pais por achar que tudo o que vão dizer são censuras ou reprimendas”, afirma. “Subestimamos a experiência deles. Passamos metade da vida fugindo dos pais e a outra metade tentando reencontrá-los.”
Carpinejar e seu pai, o também escritor Carlos Nejar, em breve realizarão, pela primeira vez juntos, um recital, “Poesia de pai para filho”, em 6 capitais do Brasil; crédito: Divulgação
Gratidão e reverência
É nessa segunda parte da trajetória em que Carpinejar se encontra – o que ele chama de “estar junto, um ato insubstituível”. E, se um sentimento pudesse sintetizar essa nova proximidade, seria o de gratidão.
“Devemos entender que os pais fizeram o melhor possível por nós, e que mesmo o que julgamos ruim ou insuficiente foi o melhor que eles puderam dar”, avalia. “Aceitar isso é aprender a perdoar.”
A seu pai, de quem adora “a gargalhada”, ele agradece sobretudo pela coragem. “Lembro-me de que, quando eu era criança e caía uma tempestade, enquanto todo mundo corria pra fechar as janelas e colocar as coisas pra dentro, ele me pegava pela mão e dizia, levando-me para a varanda de casa: ‘Vamos assistir aos relâmpagos’”, recorda.
Os dois, em breve, realizarão, pela primeira vez juntos, um recital, “Poesia de pai para filho”, em seis capitais do Brasil.
Da mãe, a principal lição que recebeu foi a de que “diagnóstico não é destino”. “Aos seis anos de idade, fui categorizado como incapaz na escola”, conta. “Ela pediu dois meses aos educadores, e nesse período me alfabetizou em casa para que eu pudesse voltar a estudar. Ela me ensinou brincando a ler e a escrever. Graças a ela, sou um filho da superação e me tornei escritor.”
Da esq. para a dir.: uma amiga da família, Maria Carpi, mãe de Carpinejar, Fabrício e os irmãos Rodrigo e Carla no capô do carro e o pai deles, Carlos Nejar, em foto de 1973 Crédito: Arquivo Pessoal
Na “reverência aos que lhe deram a vida”, como define o próprio poeta, dizendo ainda que sempre pede a bênção de seus progenitores, Carpinejar deixa algumas lições práticas para outros filhos que queiram se aventurar na busca de um novo conhecimento de seus pais:
- “Fale sempre sobre coisas que aprendeu com eles.”
- “Não fique irritado ao ouvir de novo uma mesma história que contam; pelo contrário, peça para ouvi-la de novo.”
- “Aceite os conselhos deles, por mais que sejam divergentes da sua própria opinião.”
- “Não compre brigas com os irmãos, pois brigar com eles é brigar também com os pais.”
- “Confie na destreza dos pais na realização de tarefas, deixe que peçam ajuda se precisarem.”
- “Não minta, sob pretexto algum, nem o de poupá-los do sofrimento. Nenhuma mentira compensa o alívio.”
- “E não diga que vai visitá-los se não for fazê-lo de fato; não permita que sejam mendigos de seu afeto.”
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