Dia desses, passei em frente ao número 58 da Barão de Ubá, rua próxima à Praça da Bandeira, na cidade nova, zona central do Rio de Janeiro. A velha casa do início do século vinte continua lá, maltratada, é verdade, mas ainda de pé. Janelas e portas estão seladas com tijolos e cimento. A parte de cantaria foi alvo dos pichadores, praga incontrolável que assola a cidade. Fora isso, nada mudou. Parei para observar melhor e logo vieram as lembranças. 

No endereço, morava boa parte da minha família. Avós, tios, tias, primos, primas e alguns agregados ocupavam os sete quartos e dividiam, democraticamente, as áreas comuns: duas salas, banheiros, cozinha e, em especial, o amplo puxado que se oferecia ao quintal. Naquele espaço sem paredes, coberto com folhas de zinco, aconteciam os almoços nos domingos de sol, quando nos reuníamos em volta da mesa comprida de tábuas corridas. 

Feijoadas, cozidos, vatapás, bacalhoadas, moquecas e galinhas ao molho pardo eram da preferência de todas as idades. Tudo regado à cerveja e guaraná champagne da Antárctica, o sabor nacional, como apregoava a propaganda. No início da manhã, as bebidas eram acondicionadas em um tacho enorme, e cobertas por assimétricas pedras de gelo, esculpidas a golpes de machadinha pela dona Rosa, criatura austera e taciturna, responsável por quase tudo o que se bebia e comia na casa. Nunca a vi sorrir, exceto no dia em que meu tio Alcir pulou a janela para perseguir um ladrão e quebrou o tornozelo. Mulher magnífica aquela, de beleza e vitalidade espantosas para quem já entrara nos oitenta anos. Muito mais tarde, fiquei sabendo que ela havia sido teúda e manteúda do meu bisavô, com a devida permissão da minha bisavó. Mas, isso já é outra história! 

Por volta de uma da tarde, sentávamos todos nos bancos rústicos que guardavam a mesa colossal e dalí só levantávamos quando a noite caía. Para a minha turma, as refeições possuíam uma liturgia que transcendia à comida. Sem dúvida, a celebração do imenso prazer que nos dava a companhia. 

Primeiro chegava o antepasto, acompanhado da tradicional cachacinha de cabeça. Berinjela curada no azeite e no alho, salame fatiado, fígado e moelas acebolados, azeitonas pretas e tremoços na conserva. Depois, o prato principal, invariavelmente recebido com vivas e aplausos. Por fim, o manjar de coco, os papos de anjo, as compotas de goiaba, marmelo e o indefectível bolo de fubá. Para arrematar, e estimular a azia dos mais idosos, o cafezinho coado no pano e adoçado com rapadura. 

Durante aquelas horas mágicas, falava-se de tudo um pouco. Sobre a vida, os negócios, as conquistas e derrotas; contavam-se os causos da semana e, sem cerimônia, discutia-se a relação, acertavam-se as contas. As crianças como eu, não eram ignoradas, recebiam atenções e carinhos, participando ativamente da festa. Nosso momento predileto se dava no lusco-fusco, quando a tarde se despedia. Antes de ligarem a luz, os tios mais velhos desfiavam histórias de assombrações, fantasmas e criaturas fantásticas do folclore, sempre sob os protestos da matriarca, a vó Lucília, e as advertências das mães zelosas: ‘se essas crianças não dormirem, a culpa é de vocês!’. Qual o quê! Salvo um pesadelo ou outro, dormíamos o sono dos inocentes. 

Às seis horas em ponto, tudo parava. Ligavam o rádio para que todos nós pudéssemos acompanhar, contritos, a oração da Ave Maria, recitada por Júlio Louzada. À frente de cada um, um singelo copo d’água, postos por sabe-se lá quem. 

Pouco a pouco, os protagonistas se despediam. Alguns reclamando do tempero carregado da dona Rosa, outros maldizendo a segunda-feira que se aproximava inexorável. Seguindo o protocolo, os mais jovens pediam a benção, beijando, circunspectos, as mãos dos mais velhos. 

Quando o carrilhão da sala principal batia as oito badaladas, a maioria estava debaixo dos lençóis, entregando-se submissa à inércia de Morfeu. Todos satisfeitos, felizes, íntegros em suas crenças. Convictos de que a família persistiria unida por mais um século. 

Não sei quanto tempo fiquei fincado na calçada, defronte ao berço dos meus primeiros sonhos, replantando a semente do que eu fui um dia. Sei apenas que reencontrei todos os rostos queridos do meu passado e revivi intensamente os dias felizes que me fizeram a pessoa que eu sou hoje. Saí dalí leve como um passarinho, voando de par com a alma encantada daquela bendita casa. 

Compartilhe com seus amigos