A Lapa é mágica. É um reino encantado, muito mais fascinante do que qualquer um daqueles produzidos por Hollywood. Pode levar fé. Ao cabo de duas ou três noites de sereno, perambulando pelas ruas, vielas, esquinas, praças, largos e muquifos do bairro, você vai me dar razão. E não estou me referindo apenas aos formidáveis arcos do vetusto Aqueduto da Carioca, inaugurado em 1723, obra que durou mais de cem anos e, com certeza, viu muito dinheiro escoar água abaixo. Nem aos sobrados portentosos do século dezenove e vinte, que teimam em se manter de pé. Tampouco ao Circo Voador e seus célebres espetáculos, berço que embalou o roquenrou nacional dos anos oitenta. Muito menos ainda aos bares e boates que se escoram uns nos outros, ao longo da Rua Mem de Sá e adjacências. Falo da essência, do espírito da Lapa!
Para quem é de fora do Rio, é bom situar o terreno ocupado por esse rincão da boemia, da malandragem, da arte de bem viver do povo carioca. Seus limites variam segundo os frequentadores. Se forem visitantes esporádicos, começa na Avenida Marquês de Sapucaí, o popular Sambódromo, e só termina na Glória, onde a igreja de Nossa Senhora do Outeiro, preferida pela nobreza brasileira, põe um fim a toda espécie de ‘libertinagem e patifaria’, como se dizia na época dos meus avós.
Na geografia dos assíduos, a região vai da Rua Riachuelo, Mata-Cavalos de outrora, até o fim da Rua da Lapa, onde fica a Associação Cristã dos Moços, em frente à igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro, outra versão da santinha mãe de Jesus, decerto mais indulgente, que finge não ver o que rola no seu quintal e perdoa todos nós, pecadores contumazes.
Na verdade, o balizamento da Lapa quem faz é você, com o mapa da sua emoção. Contudo, é bom lembrar que a quantidade de bebidas alcoólicas que se entorna por lá influencia diretamente na noção de tempo e espaço. Portanto, às duas da madrugada, você pode achar que ainda está na Lapa às onze da noite, mas se checar direitinho, vai descobrir que foi parar em um motel fuleiro do Catete, com uma criatura desconhecida, que aposta que vai se dar bem e casar com você. Olha a situação!
A Lapa é assim. Muda tudo e todos. Pega um amanuense celibatário, crente convicto, e o transforma em um bêbado conquistador devasso. Vira pelo avesso a moça tímida e castiça, fazendo-a incorporar uma stripper alucinada e maliciosa. Arruma um chefe de família, pai de três filhos, e o joga na cama de um travesti siliconado. Vai entender... É a Lapa!
A primeira vez em que pisei aquele solo sagrado? Juro que não me lembro. Sei que as ruas eram calçadas com paralelepípedos e exibiam trilhos de bondes. Faz um tempão, acho que uns sessenta anos, no mínimo. Meu pai, querido espanhol, me levou para experimentar um manjar dos deuses: a famosa costeleta defumada com salada de batatas à moda alemã do Bar Brasil, antigo Zeppelin, depois Germânico, fundado em 1907. O lugar existe até hoje e a comida é esplêndida. A diferença é que quando eu era menino, tudo me parecia enorme. Atualmente, a bordo do meu cruzeiro de meia-idade, não passa de um botequim estreito e diferente, no formato de ele. Só isso. Assim é a vida, quem muda de verdade é a gente.
Pelas imediações, eu conheci bem mais tarde o Nova Capela, restaurante de 1903. Provei o cabrito - que de fato é cordeiro -, a sopa de ervilhas, a canja de galinha, os bolinhos de bacalhau, crocantes, fabulosos, receita que ninguém consegue reproduzir em casa. Nas quebradas insanas das altas horas, após os desvarios de sempre, eu e meus amigos partíamos para o Nova Capela, no que costumávamos chamar de ‘romaria dos devotos da santa ceia’.
Mais à frente, na Rua Joaquim Silva, logo após os famosos estúdios da Musidisc, gravadora que eternizou o sambalanço de Ed Lincoln, Djalma Ferreira e Orlandivo, local de encontro de centenas de candidatos ao estrelato - inclusive eu -, funciona o Bandolim, restaurante vegano, que tem seu maior charme por ocupar o belo casarão em que Jacob do Bandolim aprendeu a tocar seu instrumento. Perto dali, na Travessa Mosqueira, eu costumava almoçar com meus colegas publicitários no aconchegante Cosmopolita, de 1926, onde o chanceler Oswaldo Aranha - o mesmo que defendeu na ONU a criação do Estado de Israel - inventou o saboroso filet mignon coberto de alho crocante, acompanhado de batatas à portuguesa, arroz e farofa de ovos, iguaria que tomou emprestado o seu nome.
Vivi muitas histórias na Lapa, desde a juventude. Nunca fui para a cama com um travesti, não por discriminação, todavia por opção. No entanto, já acordei em motéis do Catete algumas vezes. No reduto da Lapa ‘pintei o sete’ – traduzindo: ‘enfiei o pé na jaca’ -, incluindo beber todos os chopes que o fígado pode aguentar! Aliás, a palavra chope só existe no Brasil. Se você for à Alemanha e pedir um, vai ver o garçom ficar com cara de paisagem.
Como músico, toquei em mais de uma dezena de casas que se dividiam pelo espaço de treze ou quatorze vias públicas. Levei meu som à Lapinha, Rio Rock & Blues, Irish Pub, Lapases, Gargalo e similares. ‘Botei pra quebrar’, como se dizia naquelas priscas eras. No recanto mais cult do Rio, conheci várias faces da vida. Perdi alguns tostões, um punhado de sonhos, um tantinho de ilusões e, de quando em quando, a minha escassa paciência. Em compensação, ganhei traquejo, recordações para sempre, felicidade em doses diversas, e até mesmo um ou outro coração afoito. Saí no lucro!
A Lapa foi, é e sempre será eclética, democrática. Nos seus domínios, você pode apreciar desde a música clássica na Sala Cecília Meireles até os estilos populares, como rock, blues, o fino da MPB, com bossa nova, samba de raiz, choro, forró e pagode, que correm soltos nos bares intimistas, com suas mesas nas calçadas e até nas ruas de menor movimento. Muito antes de mim e de meus contemporâneos, aquele pedaço da cidade ouviu Noel Rosa, Almirante, Francisco Alves, Orlando Silva, Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha, Araci de Almeida, Linda e Dircinha Batista, Marlene, Emilinha e muitos outros bambas, que escreveram as mais belas páginas do nosso cancioneiro popular.
O bairro fica no centro da cidade e faz divisa com outra terra fantástica, sendo ponto final ou inicial – dependendo do seu destino – do prosaico bondinho que atravessa o topo dos arcos e percorre as ladeiras irregulares de Santa Tereza, cenário do conto ‘O Espelho’, obra do maior autor brasileiro, Machado de Assis. Por sinal, o bruxo e sua esposa Carolina também ocuparam uma casa na Lapa, precisamente no número 242 da rua homônima, onde ele criou o clássico romance ‘A mão e a luva’.
No quarteirão servido pelas desaparecidas travessas Bentevi (grafia da época), Chiquita e Adélia, situado entre marcos ainda existentes - as ruas Henrique Valadares e do Senado - ficava a famosa Villa Ruy Barbosa, conjunto de 145 casas e 324 cômodos para solteiros. Conta-se que era obrigatório haver uma casa de família a cada corredor de quartos de cavalheiros e damas solitários, como uma espécie de agência fiscalizadora da decência e da moral. Em períodos distintos, moraram na comunidade, Heitor Villa-Lobos, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Mário Lago, Osvaldo Nunes e, pasme, Silvio Santos.
Ao derredor viveram, também, o poeta Manuel Bandeira, o cronista João do Rio, Ziraldo, Millôr Fernandes, o novelista Aguinaldo Silva, Carmem Miranda, Jorge Amado, Péricles Maranhão (autor do inesquecível ‘Amigo da Onça’), Lamartine Babo e Orestes Barbosa, imortalizado pela sua primorosa ‘Chão de Estrelas’, seresta em cujas estrofes uma de minhas incontáveis paixões definitivas ‘pisava nos astros distraída, sem saber que a ventura desta vida é a cabrocha, o luar e o violão’.
Monumentos históricos não faltam à Lapa. O Passeio Público de 1873, primeiro parque da América Latina, com seu portal maravilhoso projetado por mestre Valentim que, apesar dos pesares, permanece intocado. O mesmo não se pode dizer do solar onde residia o marquês de Barbacena que, em 1845, tornou-se o mais badalado clube de danças da Corte, frequentado até por D. Pedro II, o Cassino Fluminense. Depois de abrigar os ilustres políticos da primeira Assembleia Constituinte da República em 1890; de servir de sede ao Automóvel Clube do Brasil, acabou abandonado pelo governo e pela memória do povo, como é a sina de tanta coisa importante neste país. Na função de músico, tive o privilégio de tocar em seu magnífico salão principal. Coincidência ou não, bem ao lado, está o imponente edifício da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em outro extremo, na Rua do Lavradio, você ainda pode contemplar o velho Palácio Maçônico, inaugurado em 1842, e o bicentenário Tribunal da Relação, em meio às lojas de antiguidades, bares e restaurantes que dominam aquelas bandas.
Pulando daqui para acolá, na vizinhança da Cinelândia, onde proliferavam glamourosas salas de exibição, era possível ver até quase o limiar da década de 1980 o sobrado que abrigava o bilhar mais incensado do Rio, o Palácio, palco das precisas e preciosas tacadas de Carne Frita, Detefon, Pinguim, Praça, Manezinho e seus pares, malandros para o bem e para o mal. Os mais encrenqueiros traziam no bolso interno do paletó uma navalha bem afiada, argumento decisivo quando o apostador se recusava a honrar o compromisso.
Por falar em malandragem, certa noite no final de 1970, saindo de uma parada bem debaixo dos arcos, segui pela Evaristo da Veiga, memorável Rua dos Barbonos do ciclo colonial e imperial. Tinha o violão às costas, as mãos enfiadas nos bolsos da calça e o pensamento voando distraído como passarinho sem dono. De repente, logo após o cruzamento com a Senador Dantas, fui surpreendido por um trio de mal-encarados. Gelei. Os ladrões queriam me tomar à força o minguado cachê do show que acabara de fazer. Não havia saída. Eu sozinho contra três brutamontes naquela rua deserta. Quando já me preparava para entregar os trocados, ouvimos uma ordem enérgica: ‘Alto lá, cambada! Ninguém encosta no garoto’.
Atônito, vi os três pilantras arregalarem os olhos, darem meia-volta e baterem os calcanhares na bunda em desabalada carreira na direção da Treze de Maio. Virei-me espantado e dei de cara com um negro alto e magro. Devia medir quase um metro e noventa e pesar pouco mais de setenta quilos. Ele me sorriu e disse: ‘Fica na paz de Deus, menino’. Antes que fosse embora, agradeci e perguntei-lhe o nome. ‘João Francisco dos Santos. Mas, pode me chamar de Satã, Madame Satã’. Gelei outra vez. Eu estava diante de uma lenda, um mito, um dos maiores, se não o maior malandro da Lapa; um transformista homossexual ‘macho até dizer chega’, com mortes nas costas e centenas de brigas oficialmente registradas em boletins de ocorrência policial, façanhas que ouvi desde criança e que ainda me assombravam.
Aparvalhado, indaguei: ‘Você não estava preso?’. Sorriu novamente, me tirou de cima a baixo e, sem pressa, explicou que puxara 27 anos e oito meses de tranca no presídio da Ilha Grande; que estava em liberdade há cinco; que morava de fato na ilha, e só viera à Lapa naquele dia para matar a saudade do lugar e encontrar amigos. Afinal, era o seu terreiro desde os sete anos. ‘E qual é a sua idade?’, redargui. ‘Setentinha, filhote’.
Naquele momento, recostou-se no poste de luz, dando a entender que estava disposto a continuar a conversa. Aproveitei a deixa e arrisquei: ‘é verdade que você matou o rei do samba, Geraldo Pereira, compositor do grande sucesso ‘Falsa Baiana’, com um único soco?’. Ele riu com gosto. ‘Vocês moleques de agora são uns sabichões, conhecem tudo da vida de todos’. E prosseguiu: ‘foi acidente. O Geraldo me provocou até eu lhe acertar o queixo. Caiu, bateu a cabeça na calçada e esticou as canelas a caminho do hospital’. ‘Caramba – exclamei - quantas almas você já despachou?’. ‘Que eu saiba, só três’. ‘Uma foi no tiro, né?’. Ele coçou a costeleta com as unhas compridas, pintadas de esmalte incolor. ‘O revólver disparou sem querer, a bala abriu um buraco no sujeito, mas quem matou mesmo foi Deus’. ‘Seu João... ‘Seu João, não. Madame Satã tá de bom tamanho. Pelo visto, você conhece bem o meu passado. Então, sabe que eu sou veado e gosto muito de rapazola do seu tipo’. Instintivamente dei um passo à retaguarda, me afastando. ‘Peraí, Madame, eu não jogo nesse time, não! Nada contra quem gosta, porém, eu tô fora’. Uma estrepitosa gargalhada encheu o ar, incomodando o silêncio do fim de noite e fazendo o corpo de Satã tremelicar por inteiro. Era o puro prazer de mexer comigo, de me tirar do prumo, gozação de malandro cascudo, acostumado a se impor também pela sugestão. ‘Não se preocupe, não! Tô de chiste! Eu respeito artista. Além disso, acho que você não é michê, tô certo?’.
No mesmo instante, o papo engrenou. Sentamos no meio-fio, acendemos nossos cigarros e ele soltou a língua, desfiando uma história atrás da outra. Contou-me como viera de Pernambuco; que ainda tinha mãe viva com mais de cem anos e dezesseis irmãos; que era cozinheiro de profissão; que em uma ocasião retalhara à navalha o rabo de um sargento do Exército porque havia descarregado a pistola contra ele; que Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, havia morrido esfaqueado em seus braços na cadeia, e por aí afora. Para cada pergunta de trinta segundos que eu lhe fazia, recebia em troca uma resposta de meia hora.
Assim, o lusco-fusco da matina nos encontrou e, antes do sol nascer, começaram a circular as primeiras viaturas de polícia, que retornavam ao quartel após a ronda. Não é necessário mencionar que Satã não tinha qualquer afinidade com a lei. Levantou-se com agilidade desconcertante, bateu a poeira da roupa e me estendeu a mão. Dissemos adeus sem mais. Peguei meu caminho e ele o seu.
Um ano depois, a turma do semanário ‘O Pasquim’ o entrevistou. Em abril de 1976, João, ou melhor, Madame Satã saiu de cena para sempre. Se subiu, ninguém sabe, ninguém viu. Se desceu, também não há testemunha. Meu palpite é que ainda esteja no limbo, iludindo o azar, perseguindo a sorte, driblando os débitos e cobrando as dívidas; bolando um cambalacho para enganar santos e capetas e reencarnar.
Quanto à velha Lapa, persevera como uma adolescente cheia de energia e, a cada temporada, faz mais sucesso entre velhos e moços, turistas e curiosos, cariocas da gema e adotivos. Por incrível que pareça, o bairro só foi reconhecido como tal em 2012, por meio da Lei 5.407. Até aquela data, era apenas nosso bairro de estimação, um reino mágico, com seus cantos e encantos, que dispensa decretos e nomeações para ser e fazer feliz.