Como o Império dançou e a República fez a festa

1300 frangos, 500 perus, 300 pernis de porco, 64 faisões, 18 pavões, 800 quilos de camarão, 800 latas de trufas e 1.200 latas de aspargos, acompanhados de legumes, decorados com frutas e flores. Na sobremesa, 14 mil taças de sorvete e 2.900 bandejas de doces sortidos. Tudo isso regado com 258 caixas de vinho da melhor procedência, 300 caixas de champanhe Veuve Clicquot, 10 mil litros de cerveja e licores dos mais finos. A notinha chegou a 250 contos de réis. Na época, o equivalente a 10% do orçamento anual do Rio de Janeiro.

O baile da Ilha Fiscal, o último e o mais grandioso do Império, tinha um recado implícito. Com o pretexto de homenagear os oficiais do navio Almirante Cochrane, da Marinha chilena, pretendia simbolizar a força e a solidez da Monarquia, aparentemente incólume à ira dos escravagistas, surpreendidos pela abolição um ano antes, e aos reclames do Exército, contrariado pela possível ascensão da Guarda Nacional.  Avesso a esse tipo de ostentação, d. Pedro II concordou com tudo a contragosto.

Contam alguns historiadores que, ao chegar à Ilha Fiscal na noite de 9 de novembro de 1889, d. Pedro teria escorregado e caído. Ao levantar-se, teria dito: ‘cai o imperador, mas mantém-se de pé o Império’. Tolo engano. Seis dias depois, os republicanos fizeram a festa!

A história que eu vou contar começa um tanto enviesada. Permitam-me atravessar a narrativa com um exemplo de como a República foi sempre confusa, desde o início.

O hino nacional brasileiro fora composto em 1831, pelo maestro Francisco Manuel da Silva. Durante anos sem fim não teve letra. Era só a melodia. Na guerra do Paraguai, nossos soldados não precisavam do que cantar. Só ouviam as notas e acordes encadeados, contritos, patrióticos na medida do possível, sentindo-se motivados para o sacrifício.

Com o advento da República, Deodoro da Fonseca lançou um concurso por um novo hino. Ninguém gostou das canções apresentadas e o supremo mandatário, interpretando a rejeição popular, fechou com a velha música. Passaram-se os anos, vieram outros presidentes, e não existia letra. O que fazer? Outra disputa? Isso aí!

Muito tempo depois, com Artur Bernardes no comando da nação, um poeta medíocre, Osório Duque Estrada, fez a letra, invertendo o discurso e complicando o entendimento: ‘Ouviram do Ipiranga às margens plácidas’. E daí por diante. Assim, ganhou o concurso. Pelo decreto 4.559 de agosto de 1922, a inspiração discutível foi comprada por cinco contos de réis. Uma pequena fortuna na época. Por consequência, ainda hoje, poucos sabem a letra de cor. Só por esses fatos, já se podia ter uma noção do que seria a República – uma coisa meio barro, meio tijolo.

O novo regime teve início com um movimento nascido dentro do Exército, sem apoio popular e sem envolvimento da maioria dos oficiais da outra força armada, a Marinha. Chefe do Exército, reverenciado como um dos guardiões do Estado brasileiro, Deodoro era monarquista, amigo íntimo de d. Pedro II. Não queria o fim do Império, queria apenas a deposição do Ministério avesso à suas reivindicações. Justas, por sinal.

Acometido por uma dispneia grave, não tinha forças sequer para sair da cama na véspera do golpe – eita palavrinha comum na trajetória desse país!

Porém, seus conselheiros, dentre os quais Benjamin Constant, Quintino Bocayuva, Campos Salles, Aristides Lobo, Demétrio Ribeiro e Silva Jardim tinham outra ideia. Eram discípulos de Auguste Comte, francês líder do Positivismo, doutrina que pregava a república baseada no lema ‘amor, ordem e progresso’.

A nossa bandeira atual, réplica do estandarte idealizado por Debret no primeiro quarto do século XIX, incluiu a abóboda celeste no lugar das armas do Império, com o dístico ‘Ordem e Progresso’. Esqueceram-se do ‘Amor’. Também se esqueceram da primeira versão, cópia do pavilhão norte-americano, que a exemplo do hino, não teve IBOPE.

Enquanto o imperador estava em Petrópolis, sua residência de verão, uns poucos mudaram a regra do jogo.

Em 15 de novembro de 1889, Manoel Deodoro da Fonseca apresentou-se cambaleante à frente da tropa, baseada no Campo de Santana, atual Praça da República, bem em frente à sua residência, que ainda está lá. Sem condições físicas para dominar o seu cavalo fogoso, deram-lhe por montaria o baio número seis do primeiro Regimento, dócil por natureza. Debilitado, percorreu a distância de poucos metros que o separavam do quartel, hoje sede do II Exército, palácio Duque de Caxias, onde se refugiavam alguns ministros.

Lá dentro, seu subordinado Hermes da Fonseca, seduzido pelo ideário republicano, já havia dominado a situação. Sem resistência, abriu as portas da fortaleza e colocou a guarnição à mercê das ordens do grande comandante. Enquanto o imperador estava em Petrópolis, sua residência de verão, uns poucos mudaram a regra do jogo. Sem que Deodoro soubesse, o Brasil deixava a Monarquia.

Não houve vítimas, a não ser o barão de Ladário, ministro da Marinha, atingido por um tiro desferido por um idiota anônimo. Foi socorrido e salvo pelo sobrinho, Carlos Ferreira. De resto, o povo dormiu nos braços de Pedro II e acordou inocente numa incógnita, que permanece sem solução: que país é esse?

Já na cidade, o imperador recebeu a notícia pela voz titubeante do major Sólon. Exclamou apenas ‘eu não acredito’, e pôs-se a ler uma de suas muitas revistas científicas, como se nada acontecesse. À sua volta, muitos surtavam. Ele, no entanto, mantinha-se extraordinariamente calmo, como de sorte comportam-se os homens de fibra frente às intempéries.

Durante 65 anos, o Império teve uma única constituição: a Carta magna outorgada por d. Pedro I, o personagem principal da nossa Independência. Na república, já foram seis. E parece que não chegamos a um consenso. Os Estados Unidos têm apenas uma, desde 1787. Será que há alguma coisa errada com a nossa pátria? Ou melhor, com a nossa República?

 Primeiro ministro da Fazenda da rés publica (coisa pública), Rui Barbosa começou o desastre, destruindo a maioria dos registros de escravos, com medo de o Estado ter que indenizar por obrigação os senhores rurais, os ‘barões do campo’. Aniquilou uma parte triste, contudo importante, da nossa história. Mesmo assim, a economia afundava a olhos vistos. No terreno administrativo e na seara da política, ninguém se entendia. Estavam mais ocupados em apagar as memórias do Império, deletando o passado em nome de um futuro absolutamente nebuloso, do que em gerenciar o novo governo.

Nesse compasso, seguiram-se muitos outros desmandos e o fundador incauto da República não gostou do que viu. Optou pelo tiro no próprio pé: fechou o Congresso. Sem propensão a rir da própria desgraça, o marechal Deodoro pediu ‘penico’ nove meses depois da posse. Isolou-se do mundo, arrependido, exilando-se espontaneamente na terra natal, Alagoas.

Floriano Peixoto, outro militar, saiu de vice-presidente para o controle geral da nação, burlando a recém-aprovada constituição federal, que pregava nova eleição no caso. Governou com braço de ferro, sufocando toda e qualquer aspiração popular, inclusive a revolta da Armada. Sua disposição despótica foi tema de uma das mais célebres obras da literatura brasileira, ‘ O Triste Fim de Policarpo Quaresma’, romance de Lima Barreto.

De lá para cá, outras aberrações aconteceram, com raríssimas exceções. Tivemos 38 presidentes em 128 anos, dos quais apenas 11 cumpriram plenamente o mandato, não sem atropelos. ‘Impeachments’, conhecemos dois; processos contra presidentes, contamos às dezenas; falcatruas, aos milhares.

Aprendemos a chamar o período dos primeiros erros de Velha República, e o dos enganos subsequentes, de Nova República. Semântica à parte, os vícios continuam os mesmos! Dessa forma, a república – agora em letras minúsculas, por favor – continua vida afora, fazendo do povo um refém dos interesses particulares de vários de seus profissionais de carreira. Tivemos golpes (outra vez) em 1930, 1937, 1964, e daí por diante. Hoje, continuamos eleitores de curral, ignorando, pela educação precária, os nossos direitos e deveres; compactuando com o ‘status quo’, por total desconhecimento da causa, apesar de sermos as principais vítimas dos efeitos. Seguimos crentes de que o futuro será melhor. Para nós? Não. Para os nossos filhos? Também, não. Para os nossos netos? Talvez. No entanto, a pergunta que não cala jamais é: até quando?

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