“Imagine só: um penico depois do outro, chegando em intervalos de quinze minutos, com a precisão cronométrica da Rádio Relógio Federal. Pim, pim, pim. Você sabia que o colibri da Indonésia põe um ovo a cada mês, regularmente?”. “Meu Deus! Eu não tinha ideia!”. “Do quê? Do ciclo dos colibris da Indonésia ou da frequência dos penicos?”.

O Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro estava em polvorosa naquela quinta-feira, dois de outubro de um ano que já sei foi há muito tempo. O chefe da auditoria quicava de sala em sala, de mesa em mesa, repetindo a história, vermelho de indignação, bufando como um possuído, louco para descobrir o responsável pela molecagem. Na véspera, recebera em sua casa na Tijuca dezesseis urinóis, um a cada quarto de hora, das quatro da tarde até às oito da noite, religiosamente. “Minha senhora quer saber o que aconteceu, a origem dessa cagada. Se é que alguém pode fabricar tanta merda para encher dezesseis penicos! Vou punir, doa a quem doer!”. Os funcionários disfarçavam, saíam de fininho para rir no banheiro. Todos sabiam que o Poleca Meirelles era o autor da pilhéria. Ou, pelo menos, desconfiavam.

O suspeito chegou como de hábito, bem depois da hora do ponto. Os olhinhos de sanpaku, buliçosos, perscrutando o ambiente, à procura de indícios do efeito de mais uma travessura. Cumprimentou a cada um com o mesmo maneirismo simpático de todos os dias, desfilando uma inocência digna de santo. Ouviu com a mais fingida das atenções o enésimo relato do doutor Silveira, compartilhou a revolta do chefe, “mais do que justificada”, prometeu apurar o fato até as últimas consequências, passando no crivo rigoroso todos os funcionários, até descobrir o pulha, o canalha. Houve gente que jura ter visto as bochechas do velhaco tremendo de gana.

Na hora do almoço, foi o primeiro a sair, como sempre acompanhado da Dalva e do Ernesto. Os dois dividiam com ele a comida e a satisfação proveniente das suas diabruras, prestando-se, às vezes, ao papel de informantes ingênuos, como no caso do Djalma, o sujeito que entregava ao doutor Silveira os constantes atrasos do Poleca. Durante uma refeição, deixaram escapar que o apontador de horários tinha horror à macumba, um medo incontrolável dessas coisas de despacho. Poleca processou os dados e partiu para a execução sumária. Meteu no bolso do paletó do colega dedo-duro, arriado sobre o encosto da cadeira, um charuto amarrado com fita vermelha, duas velas de cera preta e meia dúzia de olhos-de-boi, comprados numa casa de Umbanda do Estácio, bairro onde morava. Foi o bastante. Ao enfiar o paletó no final do expediente, Djalma encontrou a mandinga, empalideceu, perdeu o ar e caiu desmaiado. Por esta ou por outras, nunca mais anotou os horários de ninguém, muito menos os do Poleca, que chegava e se ia quando bem entendia, não sem antes dedicar uma piscadela ao infeliz, acompanhada de um sorriso matreiro.

O sujeitinho era dado a esses tipos de brincadeira, nos quais o constrangimento alheio era o objetivo. Quanto mais ridícula, desmoralizada, abalada a vítima, mais feliz o Poleca ficava. E não escolhia os seus alvos por classe social, econômica ou por desafeto. Nesta matéria era absolutamente democrático. Aprontava das suas com serventes, flanelinhas, colegas, chefes e, acredite, até com os familiares. Quando o propósito era pregar uma boa peça, não olhava a quem. Haja vista o que fizera com a própria irmã que, recém-casada, recebeu a visita do Poleca em plena noite de núpcias. O sacripanta apareceu com um franguinho de padaria, uma marmita de arroz à grega e algumas garrafas de cerveja de quebra. Sua intenção, cear com os noivos. Em outra ocasião, fez-se passar por maluco frente a uma tia idosa, que não o via há anos, durante uma festa de Natal. Com a conivência da turma mais nova, sobrinhos e afilhados que adoravam as molecagens do biltre, montou uma farsa que quase levou a pobre velhinha ao infarto.

Além de galhofeiro, Poleca tinha uma fraqueza crônica pelas mulheres. De preferência, as opulentas, bem fornidas de carnes. Era um conquistador contumaz. Bastava ver um tipo mais cheinho para transbordar de sedução. E não lhe bastavam os casos passageiros. Ia muito além. Embora fosse casado de papel passado com dona Eunice, não dispensava as juras em falso: prometia amor eterno a todas.  

Por força do cargo, viajava com certa frequência, percorrendo cidade por cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, com a missão de fiscalizar as contas municipais. Requisitava o vale despesa para pagar hospedagem, refeições e combustível, embarcava no fusca prateado e sentava o pé na estrada. Seus relatórios eram precisos, ricos em detalhes, autênticas obras-primas da auditoria, um modelo de perfeição seguido pelos demais companheiros. Invariavelmente, no mês de dezembro recebia a menção honrosa do Tribunal como profissional do ano.

A vida seguia seu curso, quando, num dia ensolarado de novembro, o doutor Silveira deu por falta do Poleca. Percorreu a repartição de ponta a ponta, perguntando a um e a outro pelo funcionário. Djalma deu de ombros, sem revelar que o ‘macumbeiro’ não voltara de Campos no prazo acertado. Dalva e Ernesto correram para o banheiro a fim de escapar à inquisição, e os demais nada puderam dizer, até porque, de fato, nada sabiam. O poderoso chefão resignou-se: “é o tempo dele”.

No dia seguinte, dona Eunice, a esposa do Poleca, entrou na sala do doutor Silveira com a fisionomia crispada, mal dormida e angustiada. O marido sumira do mapa, desaparecera sem deixar vestígios. Instaurou-se o inquérito. Por onde andava o Poleca?

Por um desses caprichos do destino, naquele exato instante o telefone chamou com a notícia inesperada: Poleca Meireles já era. Estava duro e frio como um coco no necrotério de Niterói. Um piripaque fulminante fechara a conta do melhor fiscal do Tribunal. Todos correram para prestar as últimas homenagens ao querido marido, funcionário, colega, amigo. Isto é, todos exceto o Djalma. Ao chegarem ao velório no São João Batista, encontraram nada menos, nada mais, do que seis viúvas inconsoláveis. Vindas de Campos, Macaé, Quissamã, São Fidelis, Itaperuna e Cambuci, choravam como carpideiras de aluguel ao redor do presunto. No semblante descansado do finado, um sorriso embalsamado debochava maliciosamente dos presentes.

 Tempos depois, um rapaz raquítico, malvestido, equilibrando no nariz adunco os óculos tortos e remendados com esparadrapo, apresentou-se ao doutor Silveira na repartição. Cobrava uma fatura atrasada de duzentos e cinquenta pratas, devida pelo último relatório que fizera para o Poleca Meirelles.

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