O babalaô Ivanir dos Santos é uma liderança em sua área de conhecimento. Aos 69 anos, o pós-doutor em História Comparada pela UFRJ está sempre em movimento. Já lutou pelas populações marginalizadas, pelo combate à intolerância religiosa, para denunciar grupos de extermínio, pelas mães de Acari, pela Chacina de Vigário Geral e por tantas outras guerras do povo preto. E acredita que longevidade não pode ser lida apenas pela questão genética ou cronológica.

Nascido na favela, o professor coroou sua história ao dedicar a tese de doutorado à prostituta de codinome Sônia d´Mauriti. Trata-se do codinome de sua mãe, da qual se separou ainda criança, aos 7 anos, após ser raptado. Depois, foi levado para a Funabem e, de lá, foi traçando seu próprio caminho sozinho, tornando-se referência ao tratar dos desafios da população negra, inclusive os relacionados ao envelhecimento.

“Minha mãe dizia que eu era muito esperto, muito inteligente, e que seria doutor para defendê-la da polícia. De fato, durante toda a vida, o que fiz foi lutar por direitos humanos”, conta.

Na entrevista exclusiva para o Instituto de Longevidade, Ivanir dos Santos avalia a questão da longevidade nas tradições africanas, do racismo através da história e das lutas que ainda precisam ser colocadas em foco para que se possa tratar da verdadeira longevidade.

Confira a entrevista com Ivanir dos Santos

Professor, como o senhor avalia a questão da longevidade para a população negra brasileira?

Ivanir dos Santos: Para começar, é preciso avaliar o que é longevidade. Para o ocidente é uma coisa, para as tradições africanas e setores da população afro-brasileira é outra. Para esses, longevidade tem a ver com prosperidade. Quanto mais você vive, mais próspero você foi. É uma dádiva divina. E a longevidade, para a cultura africana, é entender que você não é um indivíduo, que você é continuidade. Normalmente, na sociedade ocidental, o mais velho vai para o asilo, né? Nessas comunidades não. O mais velho tem todo depósito moral, espiritual, de passar sabedoria para o povo. E a última palavra é do mais velho, de orientação. Não é porque a pessoa é mais idosa, é porque tem experiência na vida e tem lugar de importância na comunidade. Não é apenas um indivíduo, faz parte de um coletivo. É diferente.

Quais são os desafios que circundam o envelhecimento, a questão da saúde da população negra?

Ivanir dos Santos: Bem, se eu olhar do ponto de vista ocidental, eu digo que antigamente não tinha tanto problema. Antigamente, todo esse conhecimento da natureza, das ervas, era uma coisa que os nossos mais velhos traziam. Hoje, se olhar a saúde da população negra, você tem um problema sério que é de hipertensão, você tem anemia falciforme, você tem a questão dos miomas nas mulheres negras. E quando você tem uma medicina que é universalizada, ela não respeita a diversidade. Então temos problemas sérios hoje. Tem um aluno meu que defende uma tese sobre o bio racismo. Ele mostra como é que a população é tratada de forma diferenciada no sistema médico. Se você olhar o número de pessoas idosas que estão nas comunidades sem assistência médica é impressionante.

Teve uma entrevista que eu fiz há alguns anos, também falando sobre longevidade, e a pessoa que eu entrevistei disse que pessoas negras têm um pouco mais de dificuldade de chegar aos 60, de passar dessa idade. Como o senhor avalia?

Ivanir dos Santos: Depende de onde você está falando. Se você olhar a área urbana, é verdade. Principalmente devido ao estresse, à questão da relação com trabalho, né? Mas de quê negro você está falando? De que lugar você está falando?

A Academia tem essa mania de pegar um retrato e querer universalizar. Existe uma população negra e idosa muito grande.

Se eu olhar do ponto de vista urbano, o negro não vai chegar aos 23 anos, vai morrer de tiro, cedo. O genocídio de assassinato perpetuado pelo estado ou pela criminalidade é muito maior nessa faixa etária do que na faixa etária adulta, na faixa etária idosa. Se você olhar as áreas quilombolas nas comunidades mais fechadas, tem muitas pessoas de 90 anos.

Ivanir dos Santos com Cláudia Vitalino

Foto: Ivanir dos Santos e Claudia Vitalino - UNEGRO RJ / Arquivo Pessoal

O senhor entende que há uma dificuldade maior do idoso negro sobreviver em comparação ao branco, aqui no perímetro urbano?

Ivanir dos Santos: Depende... sabe por quê? A idade para a população negra demora muito mais a chegar, o ponto de vista é a aparência. É claro que de acordo com as possibilidades que tem a população branca em geral na sociedade, o acesso à educação, saúde, ambiente, saneamento, ele tem uma vida melhor, digamos assim, ok? Em uma população mais precarizada, onde você não tem saúde, onde você não tem saneamento básico, tem violência, estresse, vive no mercado informal de trabalho, vai ser diferente. Mas, mesmo assim, se você fizer uma pesquisa, você vai observar que tem uma população acima de 60 anos que você acha que ela tem 40, então de quem que a gente está falando, na verdade?.

O senhor acha que é uma questão genética ou o senhor está falando de modos de vida que mexem com essa estética?

Ivanir dos Santos: Eu acho que é questão de resistência, né? Não é só de genética. Genética ajuda a gente um bocadinho, né? Mas, vou te contar. Eu cheguei até os 68 e não é mole não. Firme, inteiro, fazendo 500 coisas, andando para cima e pra baixo. Dor aqui, dor ali (risos). O que eu estou te falando é para observar.

Se quiser fazer uma pesquisa legal, pega a velha guarda de uma escola de samba. Agora, se eu ando em Copacabana, a turma da farmácia de Copacabana, a turma da farmácia da Tijuca, né? Tu quer saber onde tem mais velhos é onde tem farmácia, onde tem uma farmácia atrás da outra. É ou não é isso? Entende? No nosso campo tem muito pouco.

Eu volto a dizer o seguinte: a questão de você universalizar um grupo pode te levar a cometer alguns erros. É igual à população indígena, né? É uma relação totalmente diferente e, às vezes, o meio ambiente ajuda.

Você imagina o que é uma velha, uma idosa, digamos assim, de 70 anos, subir e descer o morro? Eu moro na mangueira. É subir e descer o morro da Mangueira todo dia, ou para levar o neto na escola, ou para não sei o quê. E essa galera aqui não aguenta isso não. A turma de lá aguenta.

Sim, entendo, e com esses modos de vidas, né?

Ivanir dos Santos: Percebe? Ela sobe e desce. Se tu pegar uma turma daqui e botar para subir, não vai nem aguentar chegar no meio ali da ladeira. Então, essas condições de vida e de ambiente têm que ser levadas em consideração. Obviamente uma pessoa que chegar a 70 anos nesses lugares vai corresponder a quase 90 do outro lado. Então é por isso que às vezes a longevidade não pode ser lida só pela questão genética, cronológica. Você vai cometer erros.

Mas, professor, quando a gente pensa nos desafios que o povo negro tem pra chegar na longevidade.. Eles não são muito maiores que os desafios que uma pessoa branca tem?

Ivanir dos Santos: Ah, isso é verdade. Pela questão do atendimento precário de saúde, pela questão da própria da alimentação, algo que é muito sério. A alimentação da galera é precaríssima, precaríssima.

E o senhor falou que tem muita gente que trabalhou em comunidade, que trabalhou como autônomo. Isso também influencia na questão da longevidade?

Ivanir dos Santos: Acredito que sim. Quer ver? Faz uma pesquisa no mundo camelô. A lógica dessa galera é “Eu trabalho hoje, levo o dinheiro hoje, para comprar o pão de amanhã e deixar o dinheiro da carne de amanhã em casa”. Pode observar isso. É diferente daquele que está no mercado de trabalho, que tem salário, espera 30 dias para receber salário. O cara tem que receber hoje para gastar hoje. A maior parte da população vive assim, entendeu? Como é que você vai tratar das expectativas de vida dessa população? Claro que ela vai correr mais risco, vai ter mais hipertensão, vai ter mais momentos de estresse, de tensão.

Faz uma pesquisa na turma dos motoboys para tu ver o estresse que é o trabalho precarizado. A turma do uber, entendeu? Então imagina aquele que não tem nem isso, só tem sua força de trabalho? E essa população negra, ela não tem plano de saúde. Vive do SUS. Por isso que defendo o SUS, né?

Ivanir dos Santos em palestra na OAB, com diversas pessoas ao seu redor.Foto: Ivanir dos Santos em palestra na OAB / Arquivo Pessoal

E entrando na pauta de racismo, a Angela Davis ela fala que na sociedade racista não basta ser racista, é necessário ser antirracista. O senhor pode falar um pouquinho sobre isso?

Ivanir dos Santos: Bom, vamos falar um pouco do país, né? Temos que observar o Brasil é um país que viveu da escravidão e tem uma dificuldade de entender isso. Segundo, o Brasil foi achado? Depende da população que analisa. Os índios vão dizer que invadiram, tomaram deles. E nós viemos para cá forçados. Só descendente de português que vai dizer que o Brasil foi descoberto.

Se você levar em conta que esse país, na colônia e no império, tinha as ordenações filipinas como código criminal, que criminalizava as nossas práticas de saúde, a cultura, as práticas espirituais e sociais… E observe que no código criminal de 1830, você criminaliza as práticas de saúde, as práticas sociais e culturais, e aparece ali a capoeiragem. Isso no século XIX.

Vamos levar em conta também que no século XIX, você teve no brasil um cara, que era o embaixador da França no Brasil, dizendo que esse país, enquanto fosse um país de presença negra, maioria negra, seria um país degenerado… Ele vai escrever um livro sobre isso. Era um eugenista. Ele se relacionava com dom Pedro e vai influenciar uma boa parcela de intelectuais na época.

Depois, a Lei Áurea extingue a escravidão e cada um que fique à sua conta, mas surgiram politicas públicas. Em 1890, por exemplo, surge o código criminal da República que criminaliza nossas práticas, um estado eugenista. Aí surgiu a lei da vadiagem. A constituição vai nascer em 1991. É dessa estrutura que estamos falando. Falam que racismo é estrutural, mas continua a estrutura. Se você não entender a constituição iluminista, não vai entender o que acontece. Diziam que africanos não eram humanos. Se o cara não é cidadão, não tem direito nem à saúde, como falar em longevidade?

O senhor acredita que o racismo estrutural está na gênese da formação da sociedade brasileira?

Ivanir dos Santos: A herança vem da escravidão. O problema das novas gerações é que acham que não tem nada a ver com a escravidão. É tipo: “se houve abolição ou não, para mim foi tudo igual”, entendeu? E se eu fizer um estudo sério no Brasil sobre as empresas que se constituíram no século XIX, aí você vai ver de onde veio o acúmulo, para onde se colocou o capital, entende? Quer ver um exemplo? A Caixa Econômica nasceu do pecúlio, mas sabe como é o pecúlio? Os escravos ou os alforriados plantavam o pecúlio na Caixa para comprar alforria. Hoje é como um banco social, entendeu? Eu não estou acusando, estou dialogando.

Você só pode ter passos importantes quando tem consciência disso. Se você não encarar a escravidão, não consegue dar passos consistentes na sociedade brasileira.

Qual seria o papel da sociedade em geral para tentar assegurar uma maior longevidade nesse sentido?

Ivanir dos Santos: Lutar pela melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro, melhorar a educação, a saúde pública. Não tem longevidade sem condições sociais que garantam isso. Os velhinhos que viajam na Europa têm uma aposentadoria decente. Não pode haver o drama de “Ou compro remédio ou comida ou entro num consignado”. Não existe longevidade com consignado.

Qual a visão do senhor com relação à luta anti racista nos últimos anos?

Ivanir dos Santos: O debate racial cresceu. Minha geração é vitoriosa. Até os anos 70, nosso papel era dizer que não havia democracia racial no Brasil. A partir dos anos 90, 2000, começamos a desenhar as primeiras políticas públicas, com a redemocratização que alguns governos passaram a fazer. As primeiras medidas começaram no governo do Brizola, muito tímidas. Depois, no governo FHC, há uma marcha a Brasília em 95. Entregamos a ele um documento e é criado um grupo de trabalho. Já tinha um trabalho sobre cotas ali no final dos anos 90 e ele vai ganhar impulso a partir da conferência de Doha.

Depois as universidades começam a aprovar cotas. Sou de uma geração que conseguiu lutar e conquistar direitos. Hoje há mais debates, meios de comunicação, um mercado que começa a abrir portas, mas não consegue ter impacto. E tem uma parcela de jovens não negros, intelectuais não negros, que entraram nesse debate, mas é pequena. É um desafio. Tenho muita esperança na juventude. Foi importante para divulgar o apartheid.

Finalmente, a gente sabe que os valores que a gente tem do povo preto e da favela são vistos sempre de forma estereotipada, como se fossem valores marginais, vagabundos. E quando a gente pára para observar as favelas e a comunidade preta, durante o processo da pandemia, foram valores como cooperação e amor que ajudaram muito mais o povo que o governo. Você acredita que esses valores são capazes de transformar o Brasil?

Ivanir dos Santos: Tem uma coisa na tradição africana que é chamada de família ampliada. Nem sempre a família é formada por consanguíneos. As comunidades são assim. Eu sempre digo que muitos anos atrás não tinha creche. A mãe saía para trabalhar e aquela que ficava trabalhando em casa, a vizinha, cuidava da criança. Quantas pessoas existem nas comunidades em que a mãe morreu e a vizinha passou a cuidar, passou a levar pra escola? Não é nem registrado como adoção.

É essa solidariedade que estou chamando. No condomínio você não sabe nem quem é seu vizinho direito. Antigamente não tinha nem muro. Essa solidariedade é muito presente nessas comunidades. Tudo é do coletivo. Na pandemia tinha gente que dividia cesta básica com os vizinhos. Todo mundo sabe quem está mal, quem está passando fome.

É essa solidariedade que ajudou a segurar na pandemia. Quando você tem uma sociedade muito individualista, um quer pisar na cabeça do outro. Esses povos não.


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