Começa com um simples acúmulo de gordura no fígado, que vai aumentando aos poucos até lesionar as primeiras células hepáticas. Neste momento, inicia-se um processo inflamatório, e então o paciente sai de uma doença hepática gordurosa não alcoólica, ou esteatose hepática simples, e passa para uma esteato-hepatite não alcoólica. É aí que começa o perigo, pois isso significa que, além de gordura do fígado, há também um processo inflamatório acontecendo.
“É como se o fígado começasse a acumular algumas cicatrizes”, explica o hepatologista Anderson Brito, do Hospital Adventista Silvestre, no Cosme Velho, zona Sul do Rio de Janeiro. “Ao longo de uma ou duas décadas, essas cicatrizes vão distorcendo a estrutura do órgão, que vai endurecendo. É esse endurecimento que chamamos de cirrose hepática”.
O especialista conta que o número de casos da doença vem aumentando significativamente nos últimos anos. Em seu consultório, no bairro de Botafogo, também zona Sul do Rio, 80% dos atendimentos são por casos de esteatose hepática em diferentes estágios. De acordo com Anderson Brito, isso ocorre porque a prevalência da doença está intimamente ligada aos hábitos de vida das pessoas.
"Os principais vilões da esteatose hepática são a obesidade, o diabetes e a dislipidemia, que são alterações do colesterol"
“Os principais vilões da esteatose hepática são a obesidade, o diabetes e a dislipidemia, que são alterações do colesterol. Então, só por esses três principais fatores de risco, já temos uma ideia da problemática que estamos nos metendo”, adverte o hepatologista.
A esteatose hepática e a obesidade
Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um alerta sobre o crescimento dos casos de obesidade no mundo. De acordo com a organização, um em cada oito adultos em todo o planeta é obeso. Quando concentramos o olhar sobre a América Latina e o Caribe, temos um obeso a cada quatro adultos. A projeção é de que, em 2025, cerca de 2,3 bilhões de indivíduos estejam com excesso de peso, sendo mais de 700 milhões com obesidade.
“O diabetes vem junto, porque a ligação entre o diabetes e a obesidade é muito íntima, e a dislipidemia também”, complementa.
Anderson lembra que, até alguns anos atrás, uma grande parcela dos casos de cirrose era considerada pelos especialistas como criptogênica (de causa desconhecida) porque os pacientes não consumiam álcool. De acordo com o especialista, era comum tachar o paciente de alcoólatra, porque a doença não era, até então, associada a outros hábitos de vida, como sedentarismo e má alimentação.
"Naquela época, esses doentes acabavam sendo estigmatizados como etilistas, quando na verdade era o hábito de vida dele que levou a uma esteato-hepatite não alcoólica"
Somente de 30 anos pra cá que a literatura médica começou a explorar a doença hepático gordurosa não alcoólica. “Naquela época, esses doentes acabavam sendo estigmatizados como etilistas, quando na verdade era o hábito de vida dele que levou a uma esteato-hepatite não alcoólica, que por sua vez levou à cirrose”, explica.
A cada dois anos, o grupo de transplante do Dr. Anderson Brito realiza um levantamento das principais causas que levam os pacientes a precisar de um transplante de fígado. Dados da pesquisa mais recente mostram que a principal delas é a Hepatite C, com 53% dos casos. A segunda causa, de cinco anos para cá, deixou de ser o álcool, com cerca de 11% dos casos, e passou a ser a esteato-hepatite não alcoólica. A Hepatite B se manteve como a terceira principal causa de cirrose.
Com quase mil transplantes na bagagem, a equipe afirma que os dados de suas pesquisas estão alinhados aos do Banco Unos, um banco de transplante norte-americano que também identificou essa mudança estatística de prevalência de cirrose com indicação para transplante.
Segundo Anderson, a idade também é um grande fator de risco para a esteatose hepática. De acordo com o especialista, pacientes com mais de 50 anos estão num grupo de mais alto risco. “Além dos hábitos de vida, tem a questão da produção hormonal que diminui com a idade, então o paciente naturalmente acumula mais gordura centrípeta e isso acaba criando fatores de risco que predominam nessa faixa etária e levam ao aumento de risco da esteatose hepática”, concluiu o hepatologista, que também atua nos hospitais São Francisco da Providência de Deus, na Tijuca; e no São Lucas, em Copacabana.
O diagnóstico
O Dr. Anderson conta que, quase sempre, a pessoa descobre que está com gordura no fígado devido a um exame realizado por outro motivo. “Recebo muitas mulheres encaminhadas por ginecologistas que pediram ultrassom abdominal para ver ovário e acabaram identificando uma esteatose hepática. Também já recebi de cirurgião bariátrico, médico que pega os grandes obesos, que é um fator de risco importante, e geralmente esses pacientes têm esteatose hepática”, relata o médico.
Alguns estudos mostram que 5% das cirurgias bariátricas identificam, no momento do procedimento, um grau de fibrose avançada em pacientes com obesidade mórbida. Isso ocorre porque a cirrose é também uma doença silenciosa em seu estágio inicial. Quando enfim o problema começa a dar sinais que levam o paciente a procurar um médico, ela já se encontra em um estágio avançado indicando o transplante.
"Esse negócio de estar atacado do fígado é uma grande lenda urbana. O fígado não dói, ele causa pouco problema"
“O fígado é silencioso, fica lá sofrendo calado. Esse negócio de estar atacado do fígado é uma grande lenda urbana. O fígado não dói, ele causa pouco problema. É um injustiçado, coitado”, afirma. Anderson explica que as dores ou incômodos sentidos pelos pacientes, muitas vezes, são gerados por problemas no estômago ou na vesícula, ou até mesmo uma distensão gasosa. “O fígado dói quando está muito inflamado e grande, seja qual for a causa. Mas a esteatose hepática, por si só, não vai causar nenhuma náusea ou dor. É completamente silenciosa. Se por acaso o fígado começar a reclamar é porque geralmente o paciente tem uma fibrose avançada já com alguma complicação ocorrendo”, garante.
A avaliação do grau da doença e a indicação do tratamento deve ser realizada por um médico especializado, preferencialmente um hepatologista, que deverá solicitar um hepatograma e um exame de curva glicêmica. No dia a dia, o diagnóstico é realizado através de um exame de ultrassom, considerado um método fácil, simples e barato.
O tratamento
O tratamento da esteato-hepatite não alcoólica, que é a fase em que ocorre a inflamação, consiste em interromper o mecanismo de acúmulo de gordura no fígado. Mas para o Dr. Anderson, o primeiro passo é a perda de peso pelo paciente. “No final, tudo está linkado ao excesso de peso, porque ele leva a uma alteração metabólica que a gente chama de resistência insulínica”, pontua Brito. “O pâncreas começa a secretar muita insulina para poder manter a glicose num nível adequado”.
Hormônio armazenador, a insulina tem o papel de preparar a pessoa para “hibernar”. Com isso, ela vai provocar um acúmulo de gordura no fígado. Quanto mais insulina, mais gordura no fígado, o que pode vir a se caracterizar como um estágio de pré-diabetes. “Esse pâncreas vai secretar tanta insulina que começará a cansar e parar. Aí a glicose começa a subir, à medida que a secreção de insulina vai diminuindo até zerar. E aí é o estágio do diabetes em que o paciente precisa tomar insulina, porque o pâncreas exauriu-se”.