Parece até história de pescador. Ou de açougueiro, no caso. Aos 84 anos, Luiz Trozzi conta que trabalha de 14 a 17 horas por dia, há 61 anos, no mesmo ponto, na Vila Mariana, em São Paulo, vendendo linguiças. “Não tiro férias, nem gosto”. Viúvo, diz que às vezes sai para pescar com amigos no final de semana. No mais, sua vida é atender a clientela no balcão do Gijo Linguiça e acompanhar de perto a produção artesanal dos 18 tipos de linguiça cujas receitas ele mesmo desenvolveu. Filho de italianos, “seu Gijo”, como é conhecido, adotou em seu negócio o slogan de “melhor linguiça do mundo”. Mas acha que, depois que morrer, ninguém conseguirá fazer um produto tão bom como o que ele faz, com tanta dedicação.

Leia os principais trechos da entrevista.

Como o senhor começou com o negócio das linguiças?

Eu mexo com isso desde 1949. Comecei a trabalhar com meu pai, no açougue dele, no centro de São Paulo. Quando ele fechou, deixou um pecúlio para cada filho. Esse estabelecimento, o das linguiças, passou a ser o meu.

Como desenvolveu as receitas?

Hoje vendo 18 tipos de linguiça, todas de fabricação própria. As receitas são todas minhas, eu que bolei tudo. Comecei com a calabresa, a toscana, e fui acrescentando ingredientes.

E quais as mais inusitadas?

Tem a Babalu, que leva figo turco, nozes, queijo ralado faixa azul, vinho moscato branco seco e tempero de calabresa. E tem também a Camponesa, que leva vinho branco seco, nozes, cidra, cereja, melão, mamão, pera, maçã, uvas passas cítricas e tempero de calabresa.

Por que diz que sua linguiça é a melhor do mundo?

Porque ninguém faz a linguiça que nós fazemos, entende? Custa caro. Eu não quero falar dos outros, mas tem muita porcaria por aí. Por que ninguém faz outra casa de linguiça? Porque isso aqui é difícil. É uma matéria que requer certa técnica para lidar, tem que conhecer profundamente. Faz uns 20 anos que adotei esse slogan de melhor do mundo. É uma realidade e uma denominação que eu mereço.

Fazer linguiça é uma arte?

Pura arte. E isso nasceu comigo, é um dom. Meu pai me ensinou um pouco, mas completei todo o resto do aprendizado sozinho.

Há clientes famosos? Como eles chegaram ao Gijo?

Eu tenho clientela no mundo inteiro. Quando a mercadoria é boa, o maior veículo de propaganda é o boca a boca. E o pessoal da imprensa escrita e falada acabou nos descobrindo também.

Como o Olivier Anquier, famoso chef franco-brasileiro, o conheceu?

Pelo boca a boca ele experimentou o produto e veio aqui, há uns dez anos. Ele compra bastante aqui.

“Ninguém trabalha comigo porque é muito difícil, ninguém faz o que eu faço, com essa dedicação”

Como o senhor tem todo esse pique? Acompanha também a produção dos itens?

Tudo passa pela minha mão. Duas vezes por semana vou ao frigorífico. Aqui não sai nada sem eu ver.

E sempre trabalhou sozinho?

Sozinho não, eu e Deus [na verdade o irmão, Francisco Roberto Trozzi, ajuda quando necessário, e o estabelecimento conta ainda com duas assistentes]. Ninguém trabalha comigo porque é muito difícil, ninguém faz o que eu faço, com essa dedicação.

O sr. é casado?

Casei-me em 1962. Minha esposa era secretária bilíngue formada pelo Mackenzie e fazia só as prendas de casa, não me ajudava no negócio. Sou viúvo há 19 anos. Tenho duas filhas [Gina, instrumentadora cirúrgica, e Gisele, psicóloga], duas netas, um neto, uma bisneta e um bisneto.

Nenhuma filha, nenhum neto quis tocar o negócio com o senhor? Não fica triste por isso?

De jeito nenhum, não tenho tristeza nenhuma. Cada um segue o seu caminho.

Mas não deixará o negócio para alguém?

Vou deixar a marca registrada para as filhas e os netos. Mas o negócio nunca será o mesmo sem a minha pessoa.

 “Não me incomodo com o ritmo de trabalho. Ruim seria ficar em uma cama de hospital”

E como o senhor mantêm a forma e a saúde?

Trabalhando, trabalhando e trabalhando. E não pagando o INSS. Nunca paguei, tomei tudo em cachaça e vinho, foi a melhor coisa que fiz na vida. E também faço cooper há 41 anos. Minha saúde está ótima. Eu como de tudo, mas sem excessos. Sorte de quem chega aos 84 anos como eu cheguei.

Não tira férias?

Não, nem gosto. Não sei ficar parado. Saio um ou outro fim de semana, mas tirar 10 ou 15 dias, nunca. Eu trabalho todos os dias, 14 horas por dia, às vezes 17. Os dias de fim de semana são os das maiores vendas. Aqui só fecha no primeiro de ano e no Natal. E planejo trabalhar até o fim, não vou me aposentar nunca. É uma paixão. Não me incomodo com o ritmo de trabalho. Ruim seria ficar em uma cama de hospital.

Não tem outros sonhos?

Meu sonho já foi embora. Era a minha esposa.

O que o senhor gosta de fazer como hobby? Ouvi dizer que é palmeirense.

Eu só descanso à noite, quando saio um pouco, vou comer alguma coisinha. Aos finais de semana às vezes vou pescar com o pessoal do Clube de Pesca de Santos. Não vou a campos de futebol nem assisto aos jogos faz mais de 30 anos. Futebol deixou de ser arte e agora é comércio.

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