Em 1971, Stênio Garcia Faro incorporou Peer Gynt, personagem folclórico do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, em cada uma das fases de sua vida – dos 14 anos aos mais de 90 –, em montagem do diretor Antunes Filho para o teatro. O ator, hoje com 84 anos, tinha 39 à época.
A cronologia do artista não necessariamente corresponde à dos papéis que exerce. Ao menos foi assim na peça sobre o poeta fanfarrão e mentiroso Peer Gynt, uma espécie de anti-herói sem caráter, mas visionário, que em determinada passagem do texto compara o ser humano ao ato de descascar uma cebola – as camadas vão sendo removidas e, ao final, sobra apenas um grande vazio.
Que essa não seja uma analogia para a carreira de atores e atrizes no Brasil. Em termos de qualificação dos profissionais, por sinal, Stênio enxerga uma lógica oposta à medida em que as camadas da trajetória artística são transpostas – aproximar-se do miolo, no caso, é atingir a plenitude.
“No caso do ator, a questão da idade é vantajosa porque dá a ele mais recursos para a interpretação, em virtude dos conhecimentos que adquiriu ao longo da vida”, afirma. “Para o ator, não importa a faixa etária do personagem, e sim a qualidade da sua representação. Conversei com o Mário Lago em seus últimos momentos de vida e ele me disse que o apogeu de sua carreira foi perto dos 90 anos, devido a tudo o que já havia conquistado àquela altura.”
“O preconceito ocorre em todos os setores da sociedade. É preciso cultivar o respeito não só em relação à idade, mas em todos os sentidos, pelas escolhas, pelas posturas de vida de cada um”
O espaço concedido pelo mercado brasileiro à atuação de artistas veteranos, no entanto, não condiz com o potencial que o amadurecimento agrega, na percepção dele. “Há atores fantásticos que são mais velhos e não encontram muitas oportunidades de trabalho”, diz. “É uma questão da cultura brasileira. No Japão, por exemplo, os melhores papéis são destinados aos profissionais mais experientes. A cultura oriental valoriza as pessoas que completam determinados ciclos da vida.”
Stênio Garcia é protagonista de uma campanha lançada recentemente pela Rede Globo em prol do respeito ao idoso. “É uma iniciativa muito importante para a educação das pessoas”, afirma. “O preconceito ocorre em todos os setores da sociedade. É preciso cultivar o respeito não só em relação à idade mas em todos os sentidos, pelas escolhas, pelas posturas de vida de cada um.”
Há mais de 40 anos na Globo, ele deverá integrar o elenco de “À Flor da Pele”, novela de Gloria Perez com estreia prevista para abril de 2017. Recentemente esteve em cartaz no teatro com a peça “O Último Lutador”.
“A televisão é um veículo que depende muito da imagem, é necessário ter boa aparência”, considera. “Então existe a tendência de priorizar os mais jovens. Eu mesmo estou há quase três anos sem ser escalado em uma novela.”
Na medida em que beleza e juventude abrem oportunidades na telinha, Stênio não se descuida da boa forma para ganhar fôlego na longevidade da carreira. “Eu trabalho meu organismo em função da qualidade do meu trabalho”, diz. “Faço pilates e ioga, por exemplo.”
“Mesmo quando dizem que não aparento a idade que tenho, está implícito o raciocínio de não aparentar, mas ser [mais velho]”
A atriz Aldine Müller, de 63 anos, conta que também cuida do corpo – faz ioga, musculação, esteira, alongamento e tenta “comer coisas decentes”. “Odeio hambúrguer e refrigerante”, afirma. “Mas enfio o pé na jaca de vez em quando, em vários sentidos.”
A atriz Aldine Müller, 63 anos, em cartaz com as peças “Virgem aos 40.com”e “O Amante do Meu Marido”; Crédito: Divulgação.
Em sua opinião, o preconceito em relação a artistas – e pessoas em geral – de idade mais avançada não se restringe ao Brasil. “É algo que existe no mundo e que na classe artística muitas vezes se manifesta de forma velada”, avalia. “Mesmo quando dizem que não aparento a idade que tenho, está implícito o raciocínio de não aparentar, mas ser [mais velho].”
Atualmente, Aldine está em cartaz com duas peças em São Paulo – “Virgem aos 40.com” e “O Amante do Meu Marido”. “As pessoas precisam entender que o mundo mudou”, diz. “Quem tem 60 anos hoje trabalha como se tivesse 40, vai à luta. Vejo pessoas com 70, 80 anos que têm uma energia incrível, namoram, vão para a academia, recomeçam a vida.”
Se o talento e a trajetória de sucesso de Stênio Garcia e Aldine Müller asseguram sua permanência sob os holofotes das produções televisivas e teatrais, nem todos os artistas têm a mesma sorte ao atingir a maturidade.
“Há muito preconceito com os mais velhos, que acabam ocupando papéis secundários. Para os principais são escaladas caras novas, bonitinhas”
“Muitos atores da velha guarda que não fizeram carreira na TV não têm nem aposentadoria ou plano de saúde, pois em geral seus trabalhos foram pagos por cachê e sem registro”, afirma Paulo Delmondes, secretário e responsável pela parte social do Sated-SP (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de São Paulo).
“Há muito preconceito com os mais velhos, que acabam ocupando papéis secundários. Para os principais são escaladas caras novas, bonitinhas. As escolas de teatro soltam 500, 600 alunos por ano no mercado de trabalho, e não há espaço para todo mundo. Sobressaem-se aqueles que têm mais QI, ou um ‘quem indica’ melhor”, constata.
O sindicato distribui mensalmente cerca de 30 cestas básicas para artistas que enfrentam dificuldades financeiras. Além disso, abriga 50 desses profissionais em um edifício na avenida São João, no centro da cidade de São Paulo.