Desde cedo, amo e respeito todos os livros. Quaisquer. Quem semeou esses sentimentos em mim foi meu pai, um espanhol autodidata que, depois de velho, correu atrás de seu sonho e o trouxe para casa em um canudo chancelado pela Associação Brasileira de Relações Públicas. Antes de ler, meu pai acariciava o livro como só se faz com o corpo do ser amado. Olhava-o com uma ternura indescritível. E, ao folheá-lo, corria os dedos magros pela página a ser virada como se estivesse se despedindo do amigo mais querido. Às vezes, retornava a ela para mais uma breve visita, como se faz quando se sente saudade. Mesmo lido e relido, meu pai jamais se esquecia de um livro. Nunca o abandonava. De quando em quando, colhia da estante o antigo companheiro para mais um encontro.

Foi isso que aconteceu comigo nesta semana. Resgatei um parceiro de muito tempo da prateleira onde hibernava e mergulhei em sua torrente de palavras novamente. Refiro-me ao livro ‘Reminiscências da Campanha do Paraguai’, escrito por Dionísio Cerqueira, militar que lutou e sobreviveu ao maior conflito armado das Américas do Sul e Central, também conhecido como a Guerra da Tríplice Aliança.

Decidi relê-lo ao cruzar a Rua 24 de Maio, no bairro do Meier, a caminho de um compromisso. A via pública faz menção à data em que ocorreu a famosa batalha de Tuiuti, e representa um tributo aos heróis que pereceram no maior e mais sangrento combate promovido na extensa área que vai da Guatemala ao extremo sul do continente. De repente, me dei conta de que por toda a cidade do Rio de Janeiro existem logradouros que se referem à Guerra do Paraguai, a começar pela antiga Rua Direita, atual Primeiro de Março (centro), dia e mês da morte do ditador paraguaio Solano Lopez em 1870, marco final da contenda. Lopez, ‘el mariscal’ (o marechal), foi o provocador oficial da desavença que lançou brasileiros, argentinos, uruguaios e, consequentemente, os paraguaios no olho do furacão. Ao invadir o Mato Grosso, o Rio Grande do Sul e o território argentino, Solano rompeu a fina linha na qual se equilibrava a paz ao longo da bacia do Rio da Prata. Seus motivos divergem nas páginas da história, dependendo do olhar ideológico de quem escreve. Contudo, em todas as interpretações foi ele o agressor.

Não desejo defender tese ou entrar no mérito de polêmicas intermináveis, pois tanto a direita quanto a esquerda já fizeram de Solano Lopez um mártir patriota e um déspota cruel, ao seu bel prazer e interesse. Pretendo apenas descrever brevemente a batalha, tendo como guia um alferes (posto inferior a tenente) do Corpo de Voluntários da Pátria da Corte, unidade oriunda da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.  Seu nome poderia ser Bento de tal.

Imagem retrata a batalha ocorrida no dia 24 de maio, durante a Guerra do Paraguai. Imagem: Wikimedia.

Pintura de Cándido Lopez retrata a batalha ocorrida no dia 24 de maio, durante a Guerra do Paraguai. Imagem: Wikimedia.

‘A quinta-feira, 24 de maio de 1866, amanheceu brumosa, lenta e silenciosa quando o alferes Bento reuniu um pequeno grupo para buscar lenha na densa floresta que circundava parte do terreno, ora alagadiço, ora seco, do acampamento aliado. Local difícil, pois mudava de atoleiro à terra firme e vice e versa em poucos metros. Todos sabiam que pouco além do limite das árvores, dos juncos e do macegal, os caboclos paraguaios, com seus ponchos vermelhos, esperavam pacientemente o momento de atacar. Por isso, o general Emílio Mallet e seus artilheiros passaram a véspera e a madrugada inteira orientando o batalhão de engenheiros na tarefa árdua de abrir trincheiras e posicionar a bateria de canhões.

Grupo dividido na procura de galhos, arbustos e pequenos troncos, Bento pôs-se de cócoras para observar o sol avermelhado que ganhava força e altura, enquanto acendia um cigarro. Não demorou até que um dos soldados viesse na carreira para contar que vira um maciço movimento de guaranis na orla da mata cerrada, ‘uma onda avermelhada, sô alferes’. Um assovio previamente combinado reuniu a meia dúzia de homens e num instante já corriam de volta ao acampamento. Quando a primeira granada explodiu no ar e a gritaria começou já estavam entre os seus.

Os paraguaios surgiram de todos os lados, ensandecidos pela adrenalina, brandindo suas lanças compridas e sabres afiados. Outros estacavam a corrida de vez em quando para disparar seus fuzis e carabinas, boa parte ainda no sistema antigo de pederneira, o que demandava mais tempo para recarregar. Quando a cavalaria inimiga apareceu, reluzindo armas sob o sol brilhante das onze horas, parecia o fim do mundo. Era apenas o princípio. Os paraguaios, montados em cavalos pequenos e ágeis, com os dedos dos pés descalços enfiados nos estribos de argola, vinham dos quatro pontos cardeais com a fúria de centauros, dilacerando corpos, degolando, rachando crânios, decepando braços e pernas, atirando à vontade suas boleadeiras em todas as direções.

As defesas aliadas, pegas de surpresa, ainda procuravam o alinhamento ordenado, quando os guaranis derrubaram a golpes de baioneta as primeiras fileiras de soldados. E assim prosseguiram até que a artilharia de Mallet disparou a primeira de uma série de cargas incessantes. Surpresos com o poderio e a pontaria dos canhões brasileiros, os guaranis refrearam seu ímpeto alucinante, o que proveu o tempo necessário para os comandantes reorganizarem os batalhões e contra-atacarem. A reação dos aliados foi tão rápida quanto brutal, uma resposta à altura da emboscada ardilosa. Os guerreiros aliados, com as bocas enegrecidas de tanto rasgarem cartuchos de pólvora com os dentes, carregavam suas armas de fulminante (sistema de ignição mais moderno) com velocidade espantosa. Por sua vez, a precisão proporcionada pelas balas Minié (cilíndricas e pontudas, em vez das antigas pelotas de chumbo usadas por grande parte dos paraguaios) e os canos raiados das suas armas de mão era infinitamente superior. Assim, a ferro e fogo, os destemidos aliados, liderados pelos brasileiros, começaram a empurrar de volta as forças paraguaias, dizimando dezenas, centenas de uma só tacada.

O troar dos canhões, o matraquear dos fuzis, clavinas, espingardas, carabinas, rifles, pistolas e revólveres; o tilintar do aço contra o aço, das baionetas, espadas, sabres e facões, misturavam-se aos gritos lancinantes, ao berreiro das ordens, impropérios e blasfêmias dos homens que se batiam como bestas e morriam como cordeiros. Uma nuvem espessa de fumo cinzento cobria todo o cenário, limitando a visão a poucos passos de distância.  Os corpos de mortos e feridos coalhavam o solo por mais de três quilômetros, e eram pisoteados pelos próprios camaradas e pelos antagonistas em sua selvageria frenética. Parecia que tinham aberto as portas do inferno.

Durante horas a fio, nossos voluntários, negros, brancos, índios, mestiços, livres e escravizados, enfrentaram com valentia acima do dever os enxames de guaranis raivosos e obstinados, uns após os outros, a todos rechaçando com garra, coragem e determinação. Naquele momento, as tropas brasileiras, constantemente ofendidas até pelos seus próprios aliados, chamadas de ‘macacos’ devido a quantidade de negros e mestiços que as compunham, uniram-se definitivamente em corpo e alma, como somente os irmãos de sangue são capazes. De fato, nascia ali o espírito da Nação brasileira. Sem esmorecer um instante sequer, progrediam cada vez mais naquele charco, em meio à barulheira ensurdecedora e a fumaça grossa que as cegava. Subitamente, outro alferes, amigo de infância de Bento, que conduzia a bandeira imperial escoltado por dois cabos, tombou e o estandarte quase se lhe escapou das mãos. Fora atingido mortalmente por um disparo, mas o braço forte de um de seus guardiões evitou que o símbolo nacional caísse por terra. Era tal a importância da bandeira naquela época de verdadeiros patriotas, que um sargento paraguaio, mesmo ferido de morte, dedicou os últimos minutos a estraçalhar com os dentes o seu estandarte, na tentativa de evitar que fosse tomado inteiro pelo inimigo. 

Pintura referente à “2ª divisão de Buenos Aires na batalha de Tuiuti” de Cándido Lopez, em 1866. Imagem: Wikimedia.

Lá pelas tantas, no centro do embate formidável, por entre a cortina de fumo, surgiu um cavaleiro de poncho de gola bordada, largo chapéu de feltro, agitando no ar a lança de ébano incrustrada de prata. Sorria, ou melhor, gargalhava. Quando o general Osório urrou a plenos pulmões ‘Viva o Brasil! Viva o Imperador!’, todos ao redor escutaram e logo perceberam que a vitória estava garantida. Passava um pouco das quatro da tarde. Chegavam ao fim mais de cinco horas de insanidade e agonia.

Ao retornar à sua barraca, totalmente exausto, Bento notou que carregava em uma das mãos uma espada partida e na outra uma pistola sem munição. À frente do abrigo de lona, jazia mais um companheiro, com os miolos arrancados a golpe de lança. Atrás do cadáver, uma espada de oficial ensanguentada, fincada na terra. Tomou a arma para si e a manteve durante toda a vida, como reverência e admiração aos heróis anônimos que lá ficaram’.

Tuiuti significa ‘brejo branco’ em tupi-guarani. Denominação singela para aquele pedaço de chão encharcado de sangue, suor e lágrimas. Neste único combate perderam a vida sete mil seres humanos, seis mil paraguaios e mil aliados. Foram feridos 10 mil, dos quais sete mil guaranis e três mil brasileiros, argentinos e uruguaios. Enfrentaram-se mais de 55 mil militares, somando-se todos os exércitos. ‘El mariscal’ Solano Lopez não participou da ação, como também não esteve presente em nenhuma outra ao longo da campanha, exceto na escaramuça que o vitimou em Primeiro de Março de 1870. 

Depois da batalha, devido à impossibilidade de sepultarem os mortos, as forças aliadas montaram pilhas de cadáveres com mais de três metros de altura e atearam-lhes fogo. Os feridos, incluindo os paraguaios abandonados à própria sorte, foram recolhidos durante seis dias consecutivos e encaminhados aos hospitais de sangue brasileiros, onde muitos deles foram amputados e outros tantos vieram a falecer. Vários dos prisioneiros sobreviventes foram enviados ao Brasil e aqui foram acolhidos de bom grado. Quanto aos nossos patrícios, muitos deles terminaram sua vida no Asilo dos Inválidos da Pátria, que veio a funcionar dois anos depois de Tuiuti na Ilha de Bom Jesus, onde atualmente se vê o Complexo da Universidade Federal do Rio de Janeiro no Fundão, Ilha do Governador. 

Hoje, a lembrança da bravura descomunal de Tuiuti está dormente e oculta no asfalto e nas calçadas da rua congestionada de automóveis e pedestres no Meier, ou na comunidade que, sem saber, carrega seu nome e sua sina no alto de um morro no bairro de São Cristóvão, onde a guerra que se desenrola nada tem a ver com a honra e a glória da Pátria. Ao contrário da nossa gente, argentinos, uruguaios e paraguaios conhecem a fundo e mantém viva a memória dos mais importantes capítulos do enredo que deu contornos definitivos às suas cidadanias, dentre eles a Campanha do Paraguai. A isto se chama identidade de um povo.

No dia 24 de maio de 2021, o combate épico de Tuiuti, que abriu caminho para a vitória aliada na Guerra do Paraguai, completa 155 anos. Tenho certeza de que, mesmo decorrido tanto tempo, para muitos as feridas continuam abertas e ainda latejam.


*Esta crônica foi baseada livremente no relato do general Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira, em seu livro ‘Reminiscências da Campanha do Paraguai’, republicado pela Biblioteca do Exército Editora em 1980. É uma modesta homenagem ao autor e a todos os homens e mulheres, libertos ou não, que participaram daquele momento da histórico.

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