Entre as muitas mudanças de padrão comportamental que foram impulsionadas pela pandemia de Covid-19, a atuação de homens na execução de tarefas domésticas vem ganhando algum destaque. O movimento, ainda tímido, já vem sendo observado por especialistas há alguns anos, desde que as mulheres entraram de cabeça no mercado de trabalho e na formação profissional, ocupando cada vez mais cargos de chefia e representando mais de 50% dos egressos das universidades brasileiras.
Mas um mercado cada dia mais competitivo exige uma dedicação ainda maior, com longas jornadas de trabalho que se estendem por bem mais que as 8 horas tradicionais. E para que homens ou mulheres alcancem o tão sonhado destaque profissional, é preciso que o outro cônjuge muitas vezes acabe por abrir mão de sua carreira, mesmo que o casal conte com o suporte de uma babá ou uma empregada em tempo integral.
Tudo parece seguir seu ritmo normal quando essa decisão parte da mulher. Mas e quando é o homem que dá esse passo e decide, em nome da carreira e do sonho da esposa, se tornar um dono de casa e assumir as tarefas domésticas?
Segundo dados do IBGE, de cada quatro casas, uma já é sustentada pela mulher. O que observa é que, nesses casos, o quadro se deve ao fato de a esposa ter um emprego melhor, o que acaba por inverter os papéis, e o homem abraça o papel de dono do lar. Nos Estados Unidos, o número de pais que exercem as tarefas domésticas já passou de meio milhão.
Tarefas domésticas: exemplo passa de pai pra filho. Crédito: Africa Studio / Shutterstock.
Na década de 1970, o líder dos Beatles, John Lennon, decidiu assumir as tarefas da casa e apoiar a carreira da esposa, Yoko Ono. Lennon não deve ter sido o primeiro a tomar essa atitude, mas com certeza não foi o último a cuidar da casa em tempo integral para que as esposas decolem em suas carreiras.
Para a psicóloga e coach Ana Melo Dias, o apoio é importante para todo mundo, ainda mais quando o nosso tempo é limitado. Ela conta que, em uma sociedade onde o espaço público, ou seja, o espaço do trabalho e político, é dominado por homens, existe uma competição grande para que uma mulher assuma um cargo relevante.
“Ela precisa se destacar para conquistar cargos que, para os homens, seriam menos concorridos na maioria das empresas. Ela tem que trabalhar mais para ganhar menos e, junto a isso, tem uma jornada de trabalho extra em casa tida como obrigatória, por ela ou pela família”, complementa.
O IBGE tem vários dados que provam essa desigualdade, principalmente entre mulheres negras.
Machismo faz com que tarefas domésticas sejam atribuídas ao feminino
Pelo machismo ser estruturante da nossa sociedade, o espaço doméstico foi atribuído ao feminino. Para Ana, não há nada de natural nisso, porque o machismo foi inventado e a obrigação da mulher cuidar desse espaço não é um fato, mas uma construção.
“Esse é o grande problema. Se ela não o faz, ou se ao fazer, não fizer de forma brilhante, seu valor como mulher é diminuído para muitos homens e até para elas mesmas. Essa é a desconstrução necessária, conseguir educar a todos para que a visão de o lugar da mulher possa ser onde ela quiser, assim como o do homem”, destaca a especialista.
Hugo Gruenwald, 78 anos, é artesão e artista plástico, funções que ocupa desde a adolescência. O ofício sempre o permitiu trabalhar de casa e, por essa razão, foi o responsável por cuidar das tarefas domésticas durante os anos em que esteve casado.
“Além de manter a casa limpa e organizada e de cuidar das refeições, eu levava minha filha na escola e buscava todos os dias e era o único pai a participar das reuniões de responsáveis”, conta Hugo. “Fazia isso para que minha esposa pudesse se dedicar à carreira dela”.
Não é questão de apoio, mas de desconstrução desse lugar
Segundo Ana Dias, muito além de dar apoio, é preciso desconstruir esse lugar de obrigação natural da mulher, o que se faz com uma verdadeira parceria do casal, ombro a ombro, onde as tarefas domésticas sejam da responsabilidade de quem mora na casa.
“Um homem ou uma mulher cuidando da casa não pode ser visto como um feito surpreendente; é apenas um adulto sendo adulto”, afirma. “Todos precisam ajudar os jovens a serem adultos funcionais, independente do gênero. Assim, a mulher é liberada desse lugar de obrigação, o que a permite buscar mais e ser mais independente”.
Na visão da especialista, o machismo cria homens para o espaço público e crianças para o espaço doméstico. E as mulheres são criadas para agradar, para se submeterem às necessidades alheias e não atenderem às próprias necessidades, o que as torna dependentes da vontade do outro e dos recursos do outro.
Sabemos que estruturas sociais não são mudadas de uma hora para outra, mas com uma geração de mulheres e homens mais conscientes será possível deixar um legado para as próximas gerações, criando possibilidades ao longo dos tempos.
“O machismo é tido como estrutural da sociedade, é base de várias sociedades há milênios, não temos escolha de vivermos sem enfrentar o machismo”, explica Ana. E dispara: “Todos fomos e somos machistas de alguma forma”.
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