Conhecida popularmente como “gordura no fígado” ou “fígado gorduroso”, a esteatose hepática ou doença hepática gordurosa não alcoólica pode se revelar um problema muito mais grave do que muitos imaginam. Isso porque, mais do que atingir o órgão, ela provoca uma série de alterações e danos no organismo por conta da deficiência de seu funcionamento. E aí que o perigo aumenta: a doença também traz consequências para a saúde do coração – e de várias maneiras!

O fato é que a esteatose hepática está fortemente associada a fatores de risco e questões cardiovasculares, como excesso de peso e obesidade (especialmente quando há acúmulo de gordura visceral), hipertensão arterial, dislipidemia, resistência à insulina e diabetes tipo 2, aterosclerose, inflamação e disfunção endotelial, doença arterial coronariana e acidente vascular cerebral (AVC). O que a torna um dos principais problemas de saúde pública da atualidade.

Estatísticas

Estimativas apontam que o acúmulo anormal e excessivo de gordura no fígado eleva em até 50% as chances do desenvolvimento de insuficiência cardíaca – cenário em que o coração não consegue bombear quantidades suficientes de sangue pelo corpo.

A constatação é resultado de um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade de Verona, na Itália, publicado na revista Gut (publicação da Sociedade Britânica de Gastroenterologia). Os profissionais analisaram 11 estudos de longo prazo sobre as complicações da doença, somando dados de aproximadamente 11 milhões de pessoas.

Entenda a relação entre o fígado e o coração

O eixo fígado-coração é um campo de interesse cada vez maior devido às crescentes evidências de uma interação bidirecional complexa entre os dois órgãos. Para esclarecer essa ligação, primeiro devemos entender a localização e responsabilidade do fígado.

O fígado, maior órgão interno do corpo humano, está na parte superior direita do abdômen, abaixo do diafragma. Podemos dizer que sua responsabilidade é proporcional ao seu tamanho: está envolvido em mais de 500 funções vitais, incluindo o metabolismo, homeostase energética, síntese biliar, desintoxicação, entre outros. Junto com o coração forma uma “equipe” para garantir a circulação saudável do sangue.

E quando falamos do processo circulatório, é preciso destacar dois fluidos corporais, que desempenham funções importantes no funcionamento do organismo e ligam esses órgãos: o sangue e a bílis (fluido produzido pelo fígado, também chamado de bile ou suco biliar).

Trabalho em conjunto

O coração é o responsável por bombear e distribuir o sangue; cabe ao fígado filtra-lo. Ele executa uma espécie de limpeza desse fluido, separando aquilo que é bom mantermos e o que não serve e deve ser descartado. Pelo fígado passam cerca de um litro e meio de sangue por minuto.

Sangue esse que vem de duas fontes: da veia porta (75% do total) e da artéria hepática (25% do total). A veia porta recolhe sangue venoso rico em substrato do baço e de órgãos que participam da digestão, e o entrega ao fígado. A artéria hepática traz sangue rico em oxigênio do coração.

E por meio da bílis, o fígado exerce outra função fundamental: dissolver a gordura nos vasos sanguíneos. Para isso, o órgão produz até duas xícaras de bílis por dia. Sem esse processo, as artérias se tornariam extremamente rígidas e bloqueadas, não permitindo uma circulação sanguínea adequada.

Uma médica mostrando a gordura no fígado de um modelo para uma paciente. Crédito: Leoschka/Shutterstock

Consequências da doença para o fígado

Para explicar as complicações que a esteatose hepática provoca, vale um esclarecimento: é chamado de hepatite qualquer processo inflamatório do fígado, que pode ser originado por diferentes razões, como as infecções por vírus e bactérias, em resposta ao sistema imunológico, o abuso do consumo de álcool ou outras substâncias, a exemplo de alguns medicamentos.

O que nem sempre é dito, no entanto, é que as doenças metabólicas, especialmente diabetes, dislipidemia (altos níveis de gordura na corrente sanguínea) e obesidade também entram nessa lista. E aqui, portanto, falamos de fatores de risco igualmente relacionados, e de forma direta, ao sistema cardiovascular.

Assim, para o fígado, as consequências do excesso de gordura, caso não sejam tomados os cuidados necessários, é a evolução para uma cirrose, isto é, uma inflamação crônica que destrói aos poucos as células do órgão. Com o tempo, ele pode perder sua função, chegar a uma insuficiência grave e, posteriormente, o quadro evoluir para um câncer hepático e muitas vezes a necessidade de um transplante de fígado.

Quando o fígado não funciona como deveria...

Quando não consegue exercer a filtragem e a dissolução da gordura no sangue, o fígado pode causar danos graves ao sistema cardiovascular. O acúmulo de gordura no órgão influencia no processo de desenvolvimento da aterosclerose (acúmulo e formação de placas de gordura e o endurecimento das artérias), nos fatores inflamatórios relacionados ao sobrepeso e obesidade, assim como na alteração do metabolismo dos lipídeos, como colesterol e triglicérides, e no aumento da resistência à insulina e o aparecimento do diabetes tipo 2.

Um fígado acometido pela doença hepática gordurosa faz com que o coração precise trabalhar mais para ejetar a mesma quantidade de sangue, o que leva ao espessamento de sua parede e a um aumento das necessidades de oxigênio, predispondo à insuficiência cardíaca, arritmias, problemas na função miocárdica (do músculo cardíaco), o surgimento da doença arterial coronária e até um infarto ou AVC.

Estudos revelam que as complicações cardíacas estão entre as principais causas de morte em indivíduos em diferentes estágios de questões hepáticas. Um agravante é que, na maioria dos casos, a esteatose hepática e suas consequências cardiovasculares são assintomáticas, especialmente nos estágios iniciais. Portanto, muitas vezes ignoradas até que se manifestem.

Se é o coração que adoece...

Como estão relacionados, um coração doente também afeta o funcionamento do fígado. Como vimos, o fígado recebe cerca de 25% do débito cardíaco e, por essa razão, é altamente sensível à redução do fluxo sanguíneo. Se o coração não consegue bombear o sangue adequadamente por conta de uma insuficiência cardíaca, vai prejudicar o funcionamento do fígado.

Ou seja, se o coração estiver com problemas, o fluxo de sangue que circula pelo fígado será alterado, provocando disfunções no processo de filtragem e até o acúmulo do líquido, com consequente aumento do tamanho do órgão. Surgem então questões ligadas à insuficiência hepática.

Tipos da doença

Importante ainda esclarecer que a esteatose hepática pode ser classificada em duas categorias principais. A primeira, como vimos, é a doença hepática gordurosa não alcoólica, que se manifesta em indivíduos que consomem pouco ou nenhum álcool, e está frequentemente associada a síndromes metabólicas. Mas há quem desenvolva o problema pelo consumo excessivo de álcool, substância que interfere no metabolismo das gorduras no fígado, levando ao acúmulo de triglicerídeos. Nesses casos, a doença recebe o nome de esteatose hepática alcoólica.

Tratamento e recomendações

Assim, a prevenção de questões cardíacas e hepáticas se sobrepõe. O tratamento para pacientes com fígado gorduroso – assim como para aqueles com problemas cardiovasculares - baseia-se em intervenções para um estilo de vida saudável.

Isso inclui: atenção ao estresse, controle de peso, alimentação equilibrada, prática de exercícios físicos regulares, evitar o cigarro e o consumo de álcool, monitoramento da pressão, colesterol e diabetes, entre outros distúrbios que possam contribuir para o acúmulo de placas de gordura nas artérias. Em alguns casos, é recomendado o uso de medicamentos.

Ainda são necessárias mais pesquisas para entender melhor a interação bidirecional entre o fígado e o coração, entretanto já sabemos que ao dar atenção e cuidar dos dois órgãos podemos assegurar tratamentos mais eficazes e uma melhora no prognóstico de pacientes tanto com doenças cardíacas como hepáticas.


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