Lembrar como começou a vender seus quitutes na rua faz Palmirinha Onofre, 86 anos, chorar. Sozinha para sustentar as três filhas e morando em uma favela, tinha que comprar o uniforme escolar – mas faltava dinheiro. Rápida, encontrou uma solução que não só remunerava melhor do que o trabalho que tinha, como também abriu as portas de emissoras.

Em entrevista para o Instituto de Longevidade Mongeral Aegon, Palmirinha – que tem três filhas, seis netos e quatro bisnetos – relembra a trajetória e faz suspense sobre os planos. Mas diz que vem muita coisa por aí.

Leia, a seguir, os principais trechos.

Qual foi a primeira receita que a sra. preparou?

Foi um pudim de leite condensado.

Que idade a sra. tinha?

Tinha 9 anos.

O que interessou a fazer?

Nasci em um sítio em Bauru [interior de São Paulo], e lá não tinha leite condensado. Vim para São Paulo com quase 7 anos, morar com uma senhora francesa. Ela me ensinou a fazer o pudim. O que me encantou foi que eu não conhecia o leite condensado. E fiquei apaixonada por aquele sabor, a textura que tinha – grosso, gostoso, meio amarelado. Hoje, quando posso, eu faço.

O amor pela culinária começou aí?

Não. Começou no sítio, com a minha mãe fazendo pão de casa e bolo de fubá. A gente a via fazer e eu ficava apaixonada. Toda vida gostei da cozinha, desde pequena. Eu queria saber de tudo.

E depois do primeiro pudim?

Ela começou a me ensinar a fazer coisas salgadas. A receita salgada foi um creme bechamel que ela fazia com aquela verdura... espinafre. Mas não era tudo que ela me ensinava.

Por quê?

Porque eu estudava um pouco e, às vezes, eu estava trabalhando. Ela me ensinava a passar roupa, a arrumar a cozinha, a atender o telefone. Ela tinha uma agência de colocações de empregada. Eu atendia o telefone e tomava nota.

O primeiro trabalho foi como atendente?

Não. Foi como acompanhante dela. Porque ela era sozinha.

“Fui para a TV por causa do sonho que eu fazia e vendia na rua”

Quando começou a cozinhar profissionalmente?

Olha, foi sempre. Minha mãe tinha um hotel e eu ajudava. Ela punha um banquinho e eu virava carne na panela no fogão a lenha.

A sra. começou a vender quando?

Comecei a vender e fui para a TV por causa do sonho que eu fazia e vendia na rua.

Vendia o sonho na rua?

Eu estava com as minhas três filhas em São Paulo e elas estudavam no mesmo colégio – uma de manhã, outra à tarde e outra à noite. Eu tinha dinheiro para comprar só um blusão e uma passava para a outra [antes da aula]. A mais nova ficava com ele no pé, como um vestido.

A mais nova passou para a parte da tarde. E ficou um mês indo sem blusão. A diretora mandou um bilhete falando que queria falar comigo. Ela sabia que eu que sustentava minhas filhas. E falou: "Palmira, infelizmente a Nanci não entra amanhã se não tiver o blusão".

Pensei: "Meu Deus, e agora?". Eu não tinha dinheiro para comprar o blusão. Naquela época, era uma fortuna.

Eu tinha uma comadre com bom poder aquisitivo. Pedi para ela o dinheiro emprestado. Peguei e pensei: "E agora, como é que eu vou pagar isso?". Pedi para meu patrão se eu podia sair um pouquinho mais cedo. Na hora do almoço, fui para casa e fiz uma massa de pão doce. Fritei e ficou lindo e maravilhoso. Peguei uma assadeira e saí vendendo, com um pano de prato bem branquinho. Saí vendendo por aqui. Era uma favela. E eu saía nas ruas, nas cabeleireiras, nos salões de beleza, nas butiques com o sonho.

No primeiro salão, todo mundo comprou e levou para casa. Em dois dias consegui o dinheiro para pagar o blusão. No fim de semana, comecei a fazer salgadinho – coxinha, empadinha, sonho, rocambole, torta doce, torta salgada.

Começou freguesa a pedir comida, jantar, fazer ceia de Natal. Fiquei fazendo isso, para poder criar minhas filhas, pagar estudo. Elas entraram na faculdade e começaram a se casar.

“Quero agradar as pessoas, mostrar que elas também podem. Uma pessoa humilde, que veio do nada, e pode”

E seu início na TV?

Comecei a fazer congelado nas casas. Tinha muita freguesa de televisão. Uma era diretora da [apresentadora] Silvia Poppovic, na Bandeirantes. Um dia ela falou: “Palmira, você é tão falante, não quer participar de uma pauta?”. Eu não tinha nem roupa para pôr, porque eu queria que as minhas filhas andassem bem arrumadas. Eram umas roupinhas de feira mesmo.

Levei uma cestinha de massa de pão cheia de empadinha. Dei para a diretora: “Olha, põe no camarim e fala para ela experimentar”. Mas ela colocou em uma mesinha no estúdio.

O programa foi um sucesso. Acho que a Ana Maria [Braga, apresentadora] estava assistindo. No outro dia, ligaram e eu não tinha telefone. Minha filha pegava as encomendas para mim. Ela disse: “Mãe, tão ligando para você da Record e querem que você vá lá”. Falei: “Programa Note e Anote? O que é filha? Não assisto”.

No dia seguinte, fui e falei com a Ana Maria. Fiz a cestinha com bolo de laranja. Não tinha, naquela época, nem mesa. Falei para um rapaz: “Dá para arrumar duas caixas e colocar em cima de um cavalete?”. Ele fez uma mesa. Coloquei uma toalha de linho, pratos bonitos, xícara, leite numa vasilha, café em outra. A Ana Maria ficou apaixonada quando viu aquilo.

Comecei a ir toda segunda. E a trabalhar muito mesmo. Receber muita proposta. Fiquei lá seis anos com ela.

A senhora se sentiu à vontade desde o começo?

Sabe o que acontece comigo? Não tenho aquela ganância de aparecer na televisão. Eu sabia que era um trabalho que estava fazendo e que ia render mais para eu pagar minhas contas.

Até hoje não tenho ganância. Quero agradar as pessoas, mostrar que elas também podem. Uma pessoa humilde, que veio do nada, e pode.

“Eu me casei e comecei a fazer o Mobral à noite para terminar os estudos. Mas meu marido era muito ciumento e falava que eu ia atrás de outras pessoas, de homem”

Qual é o maior orgulho da senhora?

São minhas três filhas. Pude dar para elas tudo o que não tive: uma faculdade, bom casamento. Não sou revoltada porque eu não tive o que pude dar para as minhas filhas.

Há algum arrependimento na carreira?

Na minha carreira, não. Só tenho arrependimento de não ter feito uma faculdade e terminar meus estudos. [Chora.]

Até que ano a senhora estudou?

Até o terceiro ano do primário. Eu me casei e comecei a fazer o Mobral à noite para terminar os estudos. Mas meu marido era muito ciumento e falava que eu ia atrás de outras pessoas, de homem. Isso jamais me interessou. Eu queria vencer para poder... [Chora.] Para poder saber melhor. Mas a vida me ensinou. O que eu sei, a vida me ensinou.

“Acho que não tem nada que [a idade] me atrapalha. Querendo fazer, eu faço mesmo”

sra. pensa em se aposentar?

[Ri.] Não. Não consigo.

Alguma reação de fã a emocionou?

Tinha uma que era moradora de rua que vivia embaixo de um viaduto. Na frente, tinha uma loja de eletrodomésticos e tinha televisão. Ela ficava assistindo – eu estava na Gazeta. Comprou as coisas e começou a vender salgadinho ali nas lojas. Quando ela mandou e-mail, já tinha comprado um computador e alugado uma casa, vendendo salgadinho que eu tinha ensinado. Isso daí me comoveu muito.

Em que a idade atrapalha?

[Ri.] Acho que não tem nada que me atrapalha. Querendo fazer, eu faço mesmo.

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